Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo quinzenal das vozes da minha cabeça.
Às vezes a gente xinga alguém. Um ato tão humano! A diferença entre uma pessoa e um cachorro é que ela pode chamar a outra de idiota em vez de ter que sair na agressão física. Cães, pelo contrário, não têm esse luxo: no máximo uns latidos que, apesar de talvez evitarem violência, são altamente impessoais. Menos satisfatório, eu diria.
O ato de xingar tem emissor e receptor, e queremos atingir dois resultados principais quando nos preparamos para ofender alguém. Primeiramente, queremos que nossas palavras de fato machuquem. O receptor precisa se ofender de alguma forma, seja ela genérica ou pessoal. Fácil, certo? O segundo ponto, mais delicado, é que queremos sentir uma satisfação enquanto xingamos. Sim, ela vem também do outro ficar ofendido, mas tem mais camadas aí. Eu vou me sentir satisfeita se as palavras que eu escolhi tão cuidadosamente façam sentido. Se elas falam de características daquela pessoa, se elas refletem a verdade, se eu realmente acho aquilo ofensivo de alguma forma.
É por isso que xingar alguém para ofender requer intenção. Estamos repletos de palavras genéricas, mas a escolha certa para o momento é a diferença que faz sair de inofensivo para ofensivo, do desrespeito aleatório para um ataque pessoal. Veja bem, não somos obrigados a ir para esses lados toda vez que vamos xingar, mas vale entender que boa parte da satisfação vai vir daí. Você sentiria mais prazer chamando alguém de besta ou de lesma burra?
(Obviamente sei que ninguém aqui jamais sentiria prazer em ofender alguém, presencial ou só na imaginação, imagine! Mas né, venham comigo pelo mero exercício intelectual)
A língua portuguesa é uma que enche a boca para insultar. Acho bonita nossa prontidão léxica para destratar a pessoa alheia, com diversas categorias. Para esculhambamento intelectual, podemos optar por jegue, burro (como a gente odeia equinos hein), idiota, imbecil, estúpido, palerma, ignóbil para quem quer ser erudito. Se é pra correr atrás da aparência, dá pra chamar de feio, horroroso, deplorável. A questão é caráter? Chama de canalha, escroto, e daí pra baixo. É sempre fácil também fazer o cruzamento entre um animal + adjetivo, que nem eu fiz antes. Chamar alguém de anta míope? Efetivíssimo.
A tarefa fica bem fácil se você quiser atacar uma mulher: temos todo um inventário de obscenidades reservadas exclusivamente para nós. Puta, vagabunda, vadia, piranha, histérica, barangona, dragão, frígida são algumas das muitas opções que temos. Nossa sociedade tem um jeito todo especial de relacionar sexualidade feminina com coisa suja, de relacionar emoções com ser mulherzinha maluca. Se esses dois não funcionarem, aí você apela pros de aparência - algo há de ofender, ninguém é de ferro.
Um dos super poderes do xingamento de gênero é que nenhum deles precisa estar atrelado à realidade. Sim, ofensas são mais contundentes quando trazem à tona aquela pontinha de verdade que machuca no âmago, MAS essas palavras feias ligadas ao gênero tem o charme de ofender de qualquer jeito. Elas mexem na condição de mulher, atuando mais fundo.
Transou com uma unidade de pessoa? Talvez quem esteja xingando você já ache que isso é o suficiente pra ser vagabunda. Ou talvez esteja sendo um ataque direto pra suas roupas, seu estilo de vida. Você pode não concordar com o ataque, mas ele é tão real para o ofensor que faz doer. Mesmo que a pessoa não ache que você é uma vadia, o fato de ela achar aquilo ofensivo… ofende. Alguém te chama de piranha, e de repente você está daquele jeito - afinal, que porra é essa? Tá achando que é quem para falar da porra da minha intimidade? Eu não sou piranha, eu não sou peixe e nem curto comer carne………
Xingar mulher para ofender é uma tarefa muito fácil.
Esses dias, porém, me vi extremamente frustrada na tarefa de xingar… um homem. Não foi ao vivo (deus me livre o confronto), mas eu esperava a satisfação emocional de poder falar um nome feio e me sentir vingada de alguma forma. O automático filho da puta me frustrou, porque além de genérico mais pretende ofender a mãe do que ele. Sei que veado ou mulherzianha e variações podem ser ofensivos pra (alguns? todos?) homens héteros, mas não são mais os anos 2000 e eu não teria satisfação nenhuma em falar isso. Tem o escroto, tão guarda-chuva de vários termos ruins, tão ligada ao falo….. também genérico demais para a situação.
Aí tem os de cunho sexual, posso falar de pau mole, broxa, chamar de precoce, posso apelar para corno, mas não sei. Eu não acredito neles, e perdem a força pra mim, acho engraçado o cara se ofender. Nunca transamos, não sei se é mole mesmo, quem se denuncia reagindo é você. E sei lá, eu estou com RAIVA. Em capslock. Eu quero te ofender com algo de verdade. Eu atacar a sua masculinidade te chamando de frouxo me dá quase nenhuma satisfação.
É tão mais fácil só chamar uma mulher de histérica ou de vadia. É um ataque ao gênero, vai irritar de algum jeito. Eu fico insatisfeita porque pau mole não tem a dimensão que puta e piranha têm, e jamais vai ter. Eu chamar um cara de frouxo ou falar de um piruzinho murxo, inclusive, são ofensas individuais - capaz que os outros caras riam junto, chamem também. Eu, no entanto, fico ofendida quando outra mulher é chamada de vagabunda - no geral a pessoa deve achar que eu sou uma também.
Ai, sei lá. Tem incel, putanheiro (gosto do som dessa palavra kk), punheteiro, esquerdomacho, machistinha, pai ausente, devedor de pensão… mas não me sinto satisfeita. A difícil tarefa de xingar um homem me lembra que pra ofendê-los eu vou ter que aceitar ficar falando de pinto ou de frouxidão, e eu simplesmente não quero. Cansei. Chamar de machista não ofende ninguém. Todo o resto cai, pífio, diante deles. Eu vou ter que xingar ele por outras vias, buscando suas outras características, o que eu pessoalmente acho um saco.
Na fácil tarefa de ofender uma mulher, basta apontar que ela é quantidade errada de mulher - não é o suficiente ou é demais, deixar implícito que nunca será a quantidade perfeita. Para o homem, sempre o mesmo tom, a brincadeira de jardim de infância - ui, ui, ui, pintinho murxo, frouxinho, fraquinho. Falta a nuance. Falta poder encher a boca e acreditar no que eu to falando.
Me frustrei. Eu rapidamente desisti dessa difícil tarefa, e fui fazer outra coisa.
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Hernan Bas é um artista radicado em Miami, que foca na figura masculina e cenário urbano, com um estilo contemporâneo que gosto muito.
Li É assim que se perde a guerra do tempo (2021) e estou extasiada . Já venceu o Hugo, Nebula e o Locus, prêmios de fantasia e ficção científica, e ganhou também meu coração (rs). São duas agentes de lados opostos trocando cartas enquanto rola uma guerra que atravessa o tempo e espaço, uma delicinha epistolar.
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Gosto muito de xingamentos antigos: estrupício, calhorda (favorito do meu pai), patife, cafajeste, vigarista... além dos clássicos cuzão e pau no cu, e sempre fui fã de chamar homem de chinelo rsrs. E muito obrigada pelo shoutout! ❤️
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