Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo (praticamente) quinzenal das vozes da minha cabeça.
I.
A sensação é de ser grande demais para estar ali. Comprimido entre paredes, o mundo parece muito menor do que deveria ser. Você não necessariamente sabe o quão maior ele é de verdade, mas você sente. Algo faz falta.
O fantasma do mundo lá fora te assombra no espaço minúsculo entre as quatro paredes em que você vive.
II.
Tem um paradoxo esquisito acontecendo. A quantidade de energia é incompatível com a pequenez do espaço. Seu corpo foi feito para viver muito mais do que é permitido ali, e o acúmulo de bateria que você não gasta te faz sentir mal. O tempo todo, você está vibrando - com muito mais intensidade do que gostaria.
Existem passeios, brincadeiras, exercícios que ajudam a gastar esse excesso. Funcionam, mas é um esforço colocar no dia. Se descuidar é muito mais fácil.
III.
Esse excesso energético te torna excessivamente atento, pilhado. Qualquer barulho, qualquer ruído, qualquer informação enerva. Involuntariamente, com toda essa energia que sobra, você se dedidca a se estressar com coisas minúsculas. Tudo parece muito sério™.
Mesmo com tanta energia sobrando, depois de tanta tensão você se sente exausto.
IV.
Para manutenção da saúde, são necessárias:
oito horas de sono diárias, com cerca de 20% delas sendo de sono profundo de qualidade;
vinte minutos de sol diários;
intervalar o tempo sentado para no máximo 30 minutos por vez, porque sedentarismo acaba com o físico;
300 minutos de atividade física moderada por semana (ou 150 minutos, se for intensa);
6000 passos por dia;
Por algum motivo, essa lista básica de sobrevivência é uma tarefa extra - e não uma parte natural do seu dia.
V.
Aliás, sua relação com sobrevivência é ambígua. Está em seu poder, mas não está. Você não caça, colhe, planta, alguém faz isso para você. Uma entidade externa e imprevisível que vai decidir, no fim do dia, se o seu esforço compensou e você merece receber algo, que outro alguém fabricou.
Comida na mesa e um teto são a busca básica, mas não bastam. A pressão para conseguir sustentar tudo é perene. Dentro do apartamento apertado, a angústia das coisas desimportantes se mistura com o terror do que realmente importa.
VI.
O animal sempre vai sofrer no ambiente artificial. Não é sobre o lugar em si ser nocivo, é sobre ele inibir o que antes viria naturalmente. No mundo “natural”, não haveria necessidade de descobrir a comida mais saudável, a forma de se manter em movimento, o estilo de vida mais adequado. Não seria perfeito, mas o corpo foi adaptado para aquilo. É justo assumir que a vida seria mais intuitiva.
Freud escreveu “Mal Estar na Civilização” em 1929, falando do sentimento que fica quando abrimos mão de impulsos individuais e/ou naturais em nome de uma vida em sociedade. Me pergunto se Freud também considerou o impacto de apartamentos de 30m2 e da vida em metrópole. Me pergunto se ele teria estrutura emocional para formular uma teoria sobre internet.
VII.
Um dos pontos que você se esforça para não pensar é na solidão do apartamento. Mesmo para quem compartilha moradia, é uma relação esquisita com o mundo. Insular. A solitude pode ser deliciosa, mas a sensação de estar fora de órbita sempre insiste em aparecer na forma de solidão.
Apartamentos não são mal assombrados, porque fantasma nenhum faria questão de ficar lá.
VIII.
Sair para longe do apartamento é catártico. Você tem uma relação difícil de explicar com horizontes abertos. Se consegue sair da cidade, uma paz te ocupa, mesmo que você sinta falta do barulho do trânsito.
As coisas parecem menos sérias™.
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Labirintos Digitais, falando sobre internet
Bia, que texto perfeito!
Oi Bia! Me peguei com vontade de destacar várias frases do seu texto, incluindo: " Se descuidar é muito mais fácil." (é impressionante como isso é muito fácil e automático né) e "Apartamentos não são mal assombrados, porque fantasma nenhum faria questão de ficar lá." (genial haahahahha). Amei as indicações do Ovelha Recomenda e agradeço pela menção ao meu texto. Um beijo, querida!