Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo das vozes da minha cabeça. Frequência? Deliciosamente indefinida.
Eu penso com muita frequência na expressão em inglês existential dread.
Dread é uma daquelas palavrinhas que a tradução não parece ter o mesmo peso que o original. Quando questionei, o Google me trouxe “temor”, “medo”, “pavor”, “horror” - o que traduziria a expressão para temor ou pavor existencial. Busquei o significado em inglês, para ver se encontro algo de revelador sobre esse par de palavras, e fui bruscamente jogada para uma lista de sites de saúde. Conteúdo tipo o Healthline, além de algumas definições de crise existencial e reflexões sobre desesperança. O pavor existencial parece estar intimamente ligado a propósito e significado, ou a falta dele.
O mundo hoje é muita coisa, mas fácil de navegar não é uma delas. O surrealismo das notícias criou uma “lógica de seriado”, com uma antecipação ansiosa pelas próximas loucuras de cada episódio. Uma espécie de entretenimento político, com acirramentos dos nichos da discussão e a internet como um palco, em todos os sentidos da palavra.
Pra completar, “Permacrise” é um neologismo que foi palavra do ano pro dicionário Collins. O termo foi criado pra traduzir a sensação de crise permanente, sintoma do mundo contemporâneo. No início do ano, eu mergulhei bastante nos relatórios de tendência e diagnósticos culturais, e foi de lá que saíram boa parte dessas informações. As tendências: o futuro é incerto, e o sentimento geral parece ser medo. Após a pandemia e todo o caos dos últimos anos, sentimentos otimistas seguem cautelosos. Mesmo no Brasil, mesmo com as mudanças de cenário, mesmo com qualquer melhora projetada.
E eu fujo pra onde??
Já diria Nietzsche (em uma citação que viajou a internet em lindas montagens) que “a arte existe para que a verdade não nos destrua”. Antes de pensar nessa arte ou na nossa fuga, fico refletindo sobre qual é essa verdade que destrói. Seria ela a realidade esmagadora do capitalismo? A noção inegável da própria morte? O medo, puro e simples? Seria a verdade simplesmente aquele vazio que existe, flutuando sobre nossa existência, e que é incompatível com nosso ritmo acelerado de positividade tóxica, trabalho e consumo?
Seria a verdade um senso permanente de existential dread? Ou seria ela só a nossa inabilidade de lidar com ele?
Não sei. Mas a arte salva, talvez, quem sabe. Se Nietzsche disse, quem sou para discordar, não é mesmo? Me sinto esquisita de falar isso depois de ler um texto da newsletter da Ariela K., o A arte salva?. Ele relaciona tristemente a percepção de valor humano à sua capacidade de produzir cultura ou ciência.
Há uma troca implícita: eu me dou a você em forma de arte, de cultura; em contrapartida, você consegue me reconhecer como humano, digno de proteção.
(Ariela K, A arte salva?)
Lembrei de uma matéria que fiz na faculdade, Desenvolvimento Econômico e Social. Foi onde entrei em contato pela primeira vez com a ideia de que desigualdade era economicamente ruim porque, além de tudo, estamos perdendo potenciais Einsteins e Picassos para a fome e probreza. Os grandes gênios e gênias dos mundo subdesenvolvido, que nunca teriam a chance de crescer.
É verdade, no caso, mas me incomoda que a gente tenha que justificar acesso a uma condição básica de vida com o potencial de produção científica ou cultural das pessoas.
Por isso, a frase do Nietzsche me vem agridoce… eu estou no aguardo da arte redentora. O mundo ainda parece esquisito, mesmo com toda a arte disponível. Na minha vida, fazer arte nunca me deu um propósito maior - dá um significado gostoso pro dia a dia, às vezes, mas só.
Seria de bom tom, nessa parte final do texto, uma virada positiva. Um ponto de conversão bem aqui, alguma beleza nas entrelinhas, desembocar em uma alegria com apenas um fundinho de melancolia. Não sei se existe esse ponto de conversão claro pra mim. No fim eu me distraio com arte, pessoas, comidinhas, bobagens. Reality show é essencial, obrigada Netflix. É o que tem, é o que faz a vida ser boa. Se está tudo tão confuso, que tal só viver sem pensar muito nisso?
“A vida é irada, vamos curtir!”
(Scooby, Pedro, durante o BBB22 - também conhecido por polêmicas com a ex mulher por causa da pensão, dentre outros charmes)
Eu uso muito essa frase pra animar as pessoas por causa do delírio inerente que ela tem. Recomendo se entregar ao delírio às vezes, é essencial.
Além da linda reflexão do Scooby, fico pensando nos filmes do Studio Ghibli.
(sim, estamos indo pra todo canto hoje)
Alguns terminam bem, outros terminam melancólicos, uma parte esmagadora tem um sentimento ambíguo. São filmes que fogem do padrão ocidental de narrativa, e abraçam espaços de silêncio. Talvez a grande virada seja algo nessa linha - não tem virada nenhum. Existe um vazio que pode ser bonito ou assustador, tem um pavor existencial que aparece às vezes. Tem uma vida inteira de coisas para viver enquanto isso acontece.
Outro filme bom para mergulhar nessa brisa é Tudo, Em Todo Lugar, Ao Mesmo Tempo, que tá aí dando as caras no Oscar. A história tem um tom forte de que nada importa - somos minúsculos, só temos uns fragmentos de experiências, questões entrecortadas. É isso, não é muito, mas de forma alguma é pouco: é o melhor que temos.
Eu acredito em algo por essas linhas. Aceitar o vazio sem medo é radical. Positividade e otimismo (que não se desconectam da realidade) também podem ser radicais - a coragem de encarar o vazio sorrindo. Resignação com o despropósito de algumas coisas pode libertar ou condenar, acho que tudo depende. Cada um vive e lida com a vida como funcionar melhor - essa sou só eu, pensando um pouco as doideras que tem por aí.
Falei muito, não disse absolutamente nada. Bom dia pra vocês, e aproveitem - a vida é irada.
Recomendações da Bia
Uma newsletter: A Diletante, da Ariela, que citei aqui. Uma forma deliciosamente complexa de pensar o mundo.
Um filme: estou pra ser humilhada no meu bolão anual do Oscar, e recomendo muito Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (com o aviso de que é ação) e o Entre Mulheres, que está no cinema.
Livros: nessa tentativa de me resignar com a relidade, li muito sobre o amor. Tudo Sobre o Amor, da bell hooks, e Agonia do Eros, do Byung Chul-Han - recomendo ambos, acho que não só a arte salva. Também estou lendo um chamado 24/7: Capitalismo Tardio e os Fins do Sono, do Jonathan Crary, e tá sendo um reflexão legal (mas não sobre o amor kkk sobre capitalismo, natureza orgânica do corpo humano, e o mundo)
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Ano passado eu escrevi um texto cujo primeiro nome que dei foi A Arte Salva. O editor não gostou, me pediu pra substituir, pq eu falava de tudo e de nada... kkkk... virou Brasil: multiverso da brancura. Para mim a arte salva. Quando li a news da Ariela semana passada fiquei muito pensativa sobre a arte cooptada pelo capitalismo, produzida para ser lida por um ponto de vista hegemônico branco.
E agora, lendo você, chego a esse lugar onde uma dose de otimismo é transformadora. Sigo acreditando no poder da arte, que transcende os limites e me tira os antolhos. Amo quando a arte mostra a incoerência humana, esbarra nas fronteiras entre o real e o imaginário, tira o foco do Eu e lança o foco no outro.
Mesmo a arte produzida para consumo ainda é arte. Quem tem toda a verdade?
A vida é irada, tô com vc!