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Eu admiro demais o esportista, porque existe uma obsessão inerente e essencial para que uma pessoa comum se torne um atleta que vai além. A atenção focal e disciplina são consequência e não causa, e mesmos nós, espectadores, buscamos traços dessa obsessão, se emocionando com a precariedade que é treinar no meio de um terreno baldio porque o desejo de chegar nas Olimpíadas é maior do que qualquer coisa.
Tive um vislumbre muito nítido dessa obssessão com o documentário Sprint, que a Netflix lançou esse ano. Aproveitando o clima olímpico, somos apresentados aos principais nomes dos atletas de 100 e 200 metros rasos nos EUA, Reino Unido, Jamaica. A grande pergunta: quem será a próxima grande estrela do esporte, após o Usain Bolt?
Eu só vi um episódio, mas confesso que a coisa ficou marcada na minha cabeça de uma forma difícil de explicar. Uma das atletas se apresenta como a mulher viva mais rápida do mundo. A palavra fome é usada repetidas vezes por diversos entrevistados: você tem que ter aquela fome. Eu vejo nos olhos dele aquela fome. Era a palavra que eu estava procurando e não sabia.
Essa fome me parece um fenômeno do atleta de alta performance, principalmente os individuais. A vontade profunda, visceral, que pede algo necessário para a sobrevivência: o processo repetitivo e focado para a superação e, quem sabe, uma forma de perfeição. As Olimpíadas são um festival de lágrimas e sorrisos de dor e êxtase em que vemos de camarote pessoas do mundo todo com essa fome nos olhos.

Olhando humildemente de fora, penso que essa competição com o mundo e consigo mesmo é quase religiosa. Soa como uma experiência transcedental você ser capaz de fazer o que faz um atleta olímpico, e ganhar uma medalha ou o título de melhor do mundo soa como cumprir um propósito de vida. Eu nunca vou poder cumprir meu propósito de vida porque ele é difuso e medíocre, no melhor sentido da palavra, mas um atleta treina focado para, um dia, poder cumprir o dele de fato.
Não coincidência, as Olimpíadas da Antiguidade eram associadas a rituais religiosos e homenageavam deuses gregos. Quando o evento acontecia, o período de trégua entre as cidades-estado, que tinham conflitos frequentes, era obrigatório. Foram quase trezentos anos de jogos de quatro em quatro anos em Olímpia, antes do imperador romano Teodósio banir sua realização.
Tem algo de muito humano, e portanto transcedental, no esporte. Ele vai além da necessidade básica de movimento e exercício físico, e toca uma parte mais profunda de nós. A prática física intensa e a competição não têm uma função, mas colocam seus praticantes em estado de fluxo, independente do nível de performance. Quando o nível é olímpico e temos os espectadores, a sensação é de assistirmos a concretudo do que é grandeza, de alguma forma. É o cumprimento de um propósito de vida, autoimposto, perseguido, dolorido.
Sou mais familiar com outras formas de transcender. Eu escrevo, desenho e pinto para sair de mim mesma, e isso é uma parte essencial da minha vida. Eu não escrevo porque preciso, eu escrevo porque é só assim que eu consigo de alguma forma tocar essa sensação de fluxo. Arte é outra humanidade muito clara - sem função, subjetiva, desesperada para se conectar com o outro. Fazer e consumir arte podem ser experiências transcedentais.
Pensando em fome e transcendência, lembro de um modelo de estudo de motivação que pode ajudar a explicar essa brincadeira. A pirâmide de Maslow é uma imagem que assombra faculdades de comunicação e briefings de marketing até hoje, quase oitenta anos após ser proposta pela primeira vez pelo psicólogo dos EUA Abraham Maslow. Ele propõe uma hierarquia das necessidades humanas, em que a base tem as necessidades básicas, como as fisiológicas, segurança, amor, autoestima, e o topo consiste no crescimento e progressão pessoal - as necessidades cognitivas, estéticas, autorrealização.
Um degrau se torna prioridade quando o anterior está sanado, subindo pela pirâmide até o topo. Uma pessoa com fome só vai pensar em comida. Uma pessoa alimentada e com segurança vai perseguir sanar sua carência emocional. Esse modelo já foi questionado, mas ele é interessante para mim por causa dos últimos ajustes que o autor fez. Logo antes da sua morte, Maslow adicionou o topo: transcendência.
Essa adição é menos conhecida, possivelmente, por dois fatores: timing, dado que ele morreu logo depois de publicar a adição em uma revista de menor porte e sem desenvolvê-la mais profundamente; e a própria natureza do tema, que pode ser levado para o âmbito espiritual. Maslow não o colocava como uma experiência necessariamente religiosa, mas separava o senso de realização pessoal da transcendência ao defini-la como uma ligação maior com o mundo, a dissolução temporária do eu, geralmente com “experiências de pico”.
"[Experiências de pico são] sentimentos de horizontes sem limites se abrindo para a visão, o sentimento de ser simultaneamente mais poderoso e também mais vulnerável do que qualquer um jamais foi, o sentimento de grande êxtase e maravilhamento e admiriação, a perda de noção de tempo e espaço com, finalmente, a convicção de que algo extremamente importante e valioso aconteceu, de forma que o sujeito é, em alguma medida, transformado e até fortalecido na sua vida diária por essa experiência.”
Abraham Maslow (tradução livre)
Maslow entendeu na transcendência algo além da realização pessoal e das ambições mundanas. Ele viu na humanidade essa necessidade que, apesar de não ser a base, se tornaria o auge. Ao adicionar esse fator em sua pirâmide, ele afirma que seres humanos precisam de experiências que os tirem dele mesmos e os levem para um próximo nível, de maneira intensa, mesmo que por um instante.

Eu penso nisso quando assisto esporte (apesar de não ser frequente). Eu penso nisso quando leio um livro que mexe comigo, vejo um filme que me tira de mim. Eu sinto isso quando eu mesma saio um pouco de quem eu sou pra poder escrever ou pintar. Penso que talvez seja por isso que a gente tem estado tão ressentidos com o futebol masculino: não vemos transcedência, só transação econômica e realização pessoal. A fome nos olhos dos jogadores é menos intensa, distraídos pela vida.
Parece ser algo muito humano nossa busca pelo além e nesso deslumbramento perante a grandeza. Tenho pra mim que esporte e arte - tanto fazer quanto testemunhar - são formas de alcançar isso. Viva as nossas humanidades!
Climinha olímpico, gostoso demais.

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Acabei de ler The Contradictions (2020), uma história em quadrinhos ganhadora do Eisner pela Sophie Yanow. Ela ainda não tem tradução, mas imagino que logo chegue. A história segue uma intercambista estadounidense em Paris, na tentativa de buscar rebeldia, propósito e amigos.
Li o volume 1 da coletânea de Macanudos, tirinhas pelo argentino Liniers, e sei lá, apenas feliz.
Textos que me pegaram por aí:
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Eu ameeeeei
Não conhecia a pirâmide de Maslow e foi certeiro o uso da bichinha, viu. Deu nome pra algumas reflexões recentes minhas. Excelente texto!