Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo (praticamente) quinzenal das vozes da minha cabeça.
0.
Fui dormir.
O sonhar acontece todas as noites, várias vezes.
Nosso sono é composto de ciclos de quatro fases, alternando sono do mais leve ao mais profundo e o estado REM (Rapid Eye Movement, ou movimento rápido dos olhos). É no fim do ciclo, que se repete mais de uma vez por noite, que alcançamos o estado REM e sonhamos.
Mais ou menos um quinto do tempo que passamos dormindo envolve sonhar, mas não nos lembramos da maioria dos sonhos.

I.
Sonhei que estava caindo, mas não tive medo… sabia que tinha algo me esperando no chão.
Relatar um sonho costuma ser uma experiência ridícula, porque não existe uma boa forma de realmente descrever as bizarrices que pareciam ser tão lógicas de olhos fechados. A narrativa não se sustenta e resta só o constrangimento cômico de tentar costurar uma história incosturável fora da nossa cabeça. Uma lista de absurdos que faz locutor e interlocutor sorrirem (ou se preocuparem).
Li um pouco sobre onironautas – pessoas que praticam sonhar lúcido e navegar sonhos de uma forma muito diferente da minha. O treinamento envolve questionar a realidade enquanto estamos acordados, para se acostumar a fazer esse tipo de pergunta e questionar a lógica esquisita que surge durante o sonho.
Não sou onironauta, mas às vezes aceito a estranheza dos sonhos mais por causa do cansaço para questionar do que qualquer outra coisa. Talvez só estejam chovendo pessoas em vez de água, quem sou eu pra saber o porquê?
II.
Sonhei que o mundo tinha mudado completamente, mas eu era exatamente a mesma. Acordei perturbada.
O sonho parece usar elementos do dia a dia para se formular. Vê-se no experimento do psiquiatra Robert Stcikgold: pessoas jogavam horas de Tetris, e tiravam uma soneca. Os blocos característicos do jogo começaram a se infiltrar nos sonhos das cobaias - inclusive daquelas com problemas de memória de curto prazo, que não sabiam identificar o que era Tetris mesmo depois de jogar. Elas relatavam blocos e formatos similares em seus sonhos.
Até metade do século XX, estudos sugeriam que a maioria dos sonhos era em preto em branco. A partir dos anos 60, mais de 80% dos sonhos tinham alguma cor. Essa diferença era real, ou só estudos que não se sustentavam um contra o outro como comparativo? A pesquisadora Eva Murzyn tentou responder essa pergunta com um estudo geracional: a conclusão é que, de fato, deve ter existido uma mudança no tempo. Pessoas que cresceram com TV em preto e branco têm mais chance de sonhar sonhos em preto e branco.
Meus sonhos são pedaços recortados da minha realidade. Questiono os detalhes que se infiltraram neles e eu nem notei. Penso em tudo que não sou capaz de sonhar, porque nunca vi.
III.
Sonhei que o mundo inteiro existia na ponta dos meus dedos. Não consegui acordar desse sonho ainda.
Eu sou cronicamente online, e isso afeta meu sono. Imagino que deve afetar os meus sonhos também, mas ainda não sei como.
A internet, num acidente que parece pouco acidental, começou a assumir o papel de inconsciente a céu aberto da nossa cultura. Quer algo mais onírico que isso? Memes se tornaram um meio de expressão que tenta executar à perfeição os sentimentos profundos em uma série de imagens autorreferenciais. Só posso imaginar o que esse fenômeno sem tempo e espaço trouxe para meus sonhos.
A internet e os sonhos são similares. Eles são áreas em que a mente inconsciente reprimida escapa.
Paprika (2006)
Se a cor da TV influenciou os sonhos, quais as novas cores que descobrimos – ou deixamos de ver - online?

IV.
Sonhei que as coisas faziam sentido, mas acordei sem entender como.
O que divide a realidade de um sonho, se não conseguimos entender direito o que aconteceu até acordar?
Deve ser a lógica. Durante o estado REM, o cérebro costuma desligar a parte lógica – a mesma parte que onironautas treinam para ligar mesmo dormindo. Sonhar não tem lógica, mas a realidade tem. Tem?
Tenho visto muita coisa do movimento Afrossurealista - que costuma parecer um sonho louco, mas cheio de significados. Tenho refletido sobre isso, o quanto o seu surreal pode ser a ridícula realidade de alguém.
Esse movimento artístico retrata isso à perfeição: o absurdo da experiência de ser o Outro - uma pessoa negra em uma cultura fundada na exploração racial . O absurdo visual para retratar o literal - a realidade não tem tanta lógica assim. Tem muito filme e série interessante, tipo Clonaram Tyrone (2023), Atlanta (2016), Desculpe Incomodar (2018), Eu Sou de Virgem (2023). Eles unem dois ingredientes principais: imagens absurdas e a experiência racial negra. Os retratos são absurdamente realistas.
Nós re-introduzimos “loucura” como visitas divinas, e reconhecemos a possibilidade de mágica. Nós assumimos as obsessões dos antigos e reacendemos a doença [dis-ease], limpando a escuridão do inconsciente coletivo tal como ela se manifesta nestes sonhos chamados cultura.
Afrosurreal Manifesto, que nomeou o movimento, por D. Scot Miller (2009) (tradução livre)
A lógica não me ajuda a distinguir direito a realidade… talvez estejamos vivendo um sonho esquisito, e esteja na hora de acordar. Afinal, o território dos sonhos é inconsciente e absurdo, mas nunca neutro.

V.
Sonhei com um texto. Tentei escrevê-lo depois de acordar, mas não consegui nada além de trechos e fragmentos.
Fiquei acelerada pensando em sonhos depois de assistir Eraserhead (1977). Um fluxo de imagens e cenas absurdas, que parecem ter uma lógica dentro da narrativa, mas indescritíveis para quem não estava lá.
É difícil traçar o exato valor e significado dos sonhos. Existe todo a função biológica, a relação com a memória e criatividade. Existe aquela sensação vaga de importância que fica assim que acordamos, como se tivéssemos acabado de perceber algo muito importante.*
Neil Gaiman é um dos meus escritores favoritos e criador do Sandman, quadrinho que virou série. O protagonista é o Sonho, uma criatura Perpétua que cria e influencia os sonhos dos mortais. Pelo boca do seu personagem, Gaiman diz que “sonhos dão significado ao seu mundo. Eles não existem e, portanto, são tudo que importa”. Não sei explicar exatamente essa citação, mas sinto que ela está próxima da verdade.
Pesquisei o tema sonhos obsessivamente nas últimas semanas. Me deparei com Sidarta Ribeiro, neurocientista e vice-diretor do Instituto do Cérebro da UFRN, que lançou dois livros dedicados ao tema: Sonho Manifesto (2022) e o Oráculo da Noite (2019). No último livro, ele defendeu o sonho como um dos caminhos para além do desastre climático e em busca de um futuro melhor e sustentável.
“Sim, há uma conexão mais profunda [entre sonhar como imaginação política e social, e o sonho biológico e psíquico], pois sonhar com um futuro melhor está na essência do sonhar, seja durante o sono ou na vigília. A experiência onírica, como viagem noturna ou devaneio da vigília, é um estado mental que recruta as mesmas regiões cerebrais que são necessárias à empatia."
Sidarta Ribeiro, em entrevista de 2022 para a Folha de São Paulo
O sonhar a noite e o devanear sobre o futuro são relacionados, e isso me faz pensar que o sonho é algo que nos faz humanos, apesar de não ser só os humanos que sonham.
Hora de acordar.
-
*(Na pesquisa, descobri que essa sensação de importância após acordar tem a ver com a queda de liberação de serotonina no sono. Não torna a sensação menos real.)
Ovelha recomenda
Explicando a Mente, documentário da Vox na Netflix. O episódio do Sonho me inspirou (e informou) demais.
Eraserhead (1977), pra quem tiver afim de não entender nada durante 89 minutos (e se questionar depois). Disponível no Mubi.
Paprika (2006), filme que muitos acusam Nolan de plagiar para A Origem. Mistura de sonho, primórdios da internet e brisa. Disponível na Netflix.
O livro Neuroses a Varejo da
tem, em um dos seus contos, a história de um mundo que os sonhos acontecem via pílulas.Das produções afrossurealistas que citei, seguem os streamings respectivos, com mais uma recomendação inclusa no fim. Assisti as últimas três da lista, e recomendo fortemente.
Clonaram Tyrone! (2023): filme na Netflix
Atlanta (2016): série na Netflix
Desculpe Incomodar (2018): filme que estava no Paramount, mas pelo jeito saiu.
Eu Sou de Virgem (2023): série no Prime Video
Enxame (2023): série no Prime Video
Pra quem se interessou por afrossurealismo, além do link do manifesto que coloquei lá em cima, ofereço humildemente esse texto que escrevi sobre o tema: Sou de Virgem: a série afro-surrealista que desafia convenções.
Eu adorei a inicitativa da
, trazendo visibilidade para autores e autoras de Newsletters. O texto da semana é E se eu for uma farsa?, falando de arte, fracasso e capitalismo, da - eu estava precisando de algo assim hoje.Assisti Retratos Fantasmas, do Kleber Mendonça Filho. Meio devagar, mas uma ótima brisa visual!
Quer me seguir por aí?
Twitter - @essabiamesmo
Instagram - @essabiamesmo
Medium - @essabiamesmo
O projeto Labirintos Digitais
Meus textos na Delirium Nerd