Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo (praticamente) quinzenal das vozes da minha cabeça.
I.
Observar o mundo é uma das formas primárias de entendê-lo. A partir da observação, vão surgir perguntas para realmente assentar o que vimos lá.
A premissa básica de uma pedagogia saudável seria incentivar todas as perguntas. Não tem pergunta besta é o ideal para um ambiente de sala de aula, por exemplo - apesar de sabermos que isso nem sempre acontece. Sob essa ótica, uma pergunta idiota jamais poderia existir. Afinal, o aprendizado depende também do nosso conforto em perguntar sem medo de ser taxada de burra.
Em um sentido estritamente pedagógico de uma sala de aula que existe no vácuo, já temos aí nossa resposta: nenhum questionamento é idiota.
II.
Não lembro se já comentei por aqui, mas sou profissional de pesquisa. Já fui de pesquiseira com questionários e grupos focais a especializada em tendências e internet (alguns temas da news ficam mais claros depois dessa explicação kkk). Foi no meu trabalho que profissionalizei minha curiosidade às vezes obsessiva, e aprendi que muito mais importante do que a resposta é a pergunta. A qualidade do que você aprende é diretamente proporcional à solidez da sua interrogação.
Partindo disso, mesmo que não existam as tais perguntas idiotas, é interessante notar que existem questionamentos de qualidade duvidosa, principalmente se pensarmos para além do aprendizado básico. Escrevi esse texto porque queria discorrer sobre um gênero perigoso porém altamente normalizado de interrogação: a pergunta cômoda. Ela também tem o nome menos amigável (mas altamente explicativo) de pergunta preguiçosa, devida a falta de esforço e intenção no processo.
III.
Perguntar com intencionalidade demanda esforço e boa vontade. Além de ser um ato de vulnerabilidade, porque nossos questionamentos refletem pontos de vista, profundidade no tema, familiaridade com o contexto, é algo que requer trabalho, sim.
No mundo da pesquisa, é normal você precisar se aprofundar em temas que nunca viu antes, sem nenhuma preliminar. Independente de estar pouco familiar com a parada, você precisa reagir para conseguir fazer a entrega. Isso te dá a habilidade de perceber melhor o que você sabe, o que você não sabe, e que tipo de base você precisa correr atrás para conseguir fazer um trabalho maneiro. Um melhor diagnóstico da nossa própria ignorância, digamos assim. Pra resolver isso, é preciso fazer as perguntas certas.
Já fiz um curso de pesquisa que dedicou horas a arte de perguntar, e que mostrava o quanto já precisamos começar a buscar informação mesmo antes de colocar uma interrogação séria no mundo. Pré pesquisa com perguntas “bobas”, a partir do que foi encontrado criar as perguntas base que de fato guiarão a pesquisa, e só aí se aprofundar na busca pelas respostas “finais” daquele trabalho. Já estive em situações em que peguei uma pergunta - minha ou de clientes - e literalmente questionei cada uma das palavras usadas, para ter certeza de que estávamos na mesma página, e aquele ângulo era de fato o mais interessante.
IV.
Perguntas cômodas acabam sendo medíocres - vão sempre no raso, exploram pouco, não provocam movimento. Na preguiça ou inércia, elas se privam de fazer um pré trabalho e raciocínio necessários. Perguntas cômodas são denúncia de despreparo: não precisamos saber tudo e estar sempre alerta, mas questionamentos preguiçosos mostram que não quisemos nem parar pra trabalhar um momento naquilo.
Quando falei da pedagogia ideal, não existiam perguntas idiotas - mas fica implícito que se espera o esforço mínimo. Tudo bem falar alguma bobagem no processo de aprendizado, mas é preciso estar tentando - e prestando atenção.
Perguntas cômodas são piores do que qualquer pergunta idiota.
V.
As perguntas preguiçosas não são os únicos perigos na vida de nós, questionadores. Temos uma gama de outras que também deviam nos botar medo, mas por outras razões.
Temos as venenosíssimas perguntas desonestas, quando questionamos sem nos dispor a examinar nosso ponto de vista e o que queremos de fato extrair da resposta (muito interessante toda essa base teórica falando das questões nocivas da sociedade de consumo e hiperconexão… então você é comunista?). Aquelas que nem resposta buscam, mas sim instabilidade, a ruptura de uma interrogação ali no meio (A QUEM INTERESSA VACINAR O BRASIL??!?!?!?111). As ofensivas, porque perguntas de fato podem ofender, com questões que vêm de um lugar de ingenuidade alienada ou de crueldade calculada (que cabelo crespo bonito, você lava? ou você é trans? mas fez cirurgia? como você é lá embaixo?).
VI.
A arte de perguntar é fina. Leituras de hora, lugar e interlocutor são essenciais. Reflexão sobre a origem da pergunta - e o quanto conseguimos elaborar respostas ou questionamentos mais profundos antes de fazê-la em voz alta para alguém - são um processo saudável para nossa visão de mundo.
Afinal, perguntas não saem do vácuo, saem de nós, marinadas do nosso ponto de vista. Perguntar com destreza envolve se questionar: por que eu acho isso? De onde veio essa reação? Essa conexão que fiz realmente faz sentido? Perguntar é uma arte, no sentido de habilidade que pode ser trabalhada e aprofundada.
VII.
Eu cheguei a escrever uma apresentação no meu currículo uma vez, no desespero de soar inteligente e também profissional (aiai). Acabei chegando numa frase que, clichês de LinkedIn a parte, me agrada demais: acredito que as perguntas são ainda mais importantes do que as respostas.
Sei lá, perguntar é meu esporte favorito. Sigo buscando as próximas perguntas (se são ou não idiotas não posso afirmar nada).
Semana passada pulei a news porque era carnaval graças a deus, e acabei atrasando o envio em um dia nessa semana porque fiquei com uma lembrancinha da folia <3 (virose kkk). Retornando à programação normal, em breve com novidades!!!
Ovelha recomenda
Já usei gifs da Laurène Boglio e coloquei no Ovelha Recomenda, mas queria novamente falar que acho as artes dela muito foda - tanto as animadas quanto as estáticas!
Estou na maratona do Oscar para mais uma vez perder no bolão com meus amigos, e vou recomendar os filmes da lista à medida que for assistindo. Gostei muito de Vidas Passadas, que está concorrendo para melhor filme e roteiro.
Estou lendo Mau Hábito, da Alana Portero. Uma história em primeira pessoa de ume menina trans descrevendo o mundo - um bairro de trabalhadores com uma onda de heroína nos anos 80, em Madri. O estilo é em capítulos quase crônicos, honestos, observadores.
Textos que me pegaram esses tempos:
Já recomendei o livro Amanhã, amanhã e ainda outro amanhã, mas queria reiterar a recomendação com a resenha que escrevi pra Delirium!
Mesma coisa com a animação da Netflix Scott Pilgrim Takes Off - coloquei no Ovelha Recomenda de melhores do ano, mas agora temos a resenha que saiu na Delirium.
Pra quem gosta de perguntas que levam para um labirinto, eu já tive um projeto nessa vibe. Aquele Podcast Lá começava cada episódio com uma pergunta - por que velho e jovem se odeiam, por que eu sinto vergonha alheia, por que piada de pum é tão engraçada? Encerrei o projeto com uma ode a perguntas, avaliando se a curiosidade matou o gato.
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Meus textos na Delirium Nerd
Labirintos Digitais, falando sobre internet