Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo (praticamente) quinzenal das vozes da minha cabeça.
Edição na quarta em vez de segunda, porque o carnaval é assim mesmo <3
I.
Escrevo isso entre janeiro, fevereiro e março, a janela irresistível e inescapável do limbo brasileiro pré carnavalesco. Não sei no resto do mundo, mas aqui nos trópicos o tempo literalmente se espessa e passa diferente nessa época. É um luxo não ser ejetada a começar o ano na marra. Eu sei disso e agradeço - ainda bem que sou brasileira.
Estamos em um bom momento para a identidade brasileña, apesar da GARFADA que tomamos no prêmio de melhor atriz domingo passado. Começamos a exportação de um dos nossos grandes bens culturais (Fernanda Torres) e ganhamos nosso primeiro Oscar, embalados também no grande momento na cultura pop para os latinos no geral: música latina como um dos gêneros em maior ascensão, Bad Bunny quebrando tudo… sei lá, até a série Cem Anos de Solidão sendo bem avaliada por aí.
II.
A latinidade é um emaranhado complexo: uma tentativa de agrupar trinta e três países unidos principalmente por colonizadores comuns e idioma, com um cabo de guerra que ora aproxima, ora afasta os hermanos hispânicos dos brasileños. Repúblicas que surgiram em períodos parecidos, mas com geografias diversas, resultados variados na miscigenção racial, no dialetos, na preservação dos povos originários. Muitas similaridades históricas, com movimentos progressistas e conservadores que costumam tomar o continente em ondas. Uma posição de Outro no contexto global - alô Repúblicas das bananas.
Já ouvi diferentes versões sobre como o Brasil se relaciona com essa identidade. No projeto LAM (Las Américas y el Mundo), em 2015 vimos que só 4% dos brasileiros se definem como latino-americanos, versus 43% na média dos outros países. Eu revirei a internet mas infelizmente parece que essa pesquisa, que foi recorrente até 2018, não está mais disponível - eu adoraria ver a evolução dela. Será que estamos mais latinos, ou menos?
Nos EUA, apesar do brasileiro no geral ser enxergado como latino, ele tecnicamente não deveria ser classificado como tal: o censo estadounidense considera latino apenas quem vem de um país da América falante de espanhol. Um bug no tratamento do questionário em 2020 mostrou que mais de 400 mil brasileiros expatriados se consideram latinos, apesar dessa definição limitada oficial dos EUA. Esse número não é algo comparável ao dado anterior que comentei - não são da mesma pesquisa, amostra ou metodologia, então não sei como anda a autoimagem BR hoje em dia.
A impressão que me dá, no entanto, é de que a gente se sente muito mais latino quando está largado em terras estrangeiras.
III.
O que significa a identidade latina, na prática? Busco pistas no trabalho da pesquisadora Erin Meyer, que construiu o que ela chamou de Culture Map. Ela estabeleceu oito parâmetros para avaliar cultura, e situou setenta e um países em cada uma dessas réguas. São critérios variados, como o tipo de comunicação, que pode ser de alto contexto, ou seja, muita coisa subentendida, versus baixo contexto, uma comunicação mais direta - pense no Japão, que tem uma série de códigos de etiqueta específicos e os kanjis literalmente podem ter ambiguidades, como uma cultura de alto contexto, e na Alemanha, que absolutamente tudo é colocado na frase, sem espaço para interpretação aberta, como baixo.
Essas réguas também situam países na escala do quão direto é o feedback negativo, se liderança costuma ser igualitária ou hierárquica, se a decisão vem de cima ou é um consenso, se relações de trabalho criam confiança na amizade ou na execução de tarefas, se as pessoas evitam ou enfrentam confrontos, se a relação com o tempo é de recurso escasso (não vai desperdiçar, pontual) ou flexível, se cria narrativas de vendas/aulas/etc apresentando primeiro teoria ou primeiro prática.

O gráfico é um pouco poluído, mas basicamente: as duas linhas mais à esquerda são a Holanda (NL) e a Alemanha (DE). O emaranhado mais a direita são os países latinos avaliados - Brasil, Bolivia, Chile, Argentina, Venezuela e México. Com exceção da Argentina, que se distancia da gente em três parâmetros (relacionados a serem mais diretos na comunicaçã), vemos que na prática somos muito parecidos. Uma enorme população hablante de portunhol, com comunicação de alto contexto, que evita confronto, tem tendências indiretas, que costuma ter lideranças mais hierárquicas, não costumam ser pontuais, e no trabalho criam confiança uns nos outros a partir de relacionamentos (e não tarefas e execução).
São traços culturais similares, de fato, mas tem muito mais do que isso por aí. A Erin Meyer é uma pesquisadora de trabalho em multinacional, construindo esses parâmetros justamente para aumentar eficiência e diminuir os atritos na produtividade que a variedade cultural acaba causando. Essas réguas são muito práticas, utilitárias, estadounidenses - eu preciso de mais. Por que o tempo é mais flexível para mim do que para um alemão? Porque eu tenho medo de ser grossa ao discordar?
De onde vêm essas latinidades?
IV.
Esses dias visitei o Parque Lage aqui no Rio, que é essencialmente um engenho de açúcar que passou por algumas mãos e reformas, com um jardim estilo europeu e uma vibe palazzo italiano porque um dos nobres que foi dono quis assim. Um passeio 0800 maneiro porém que forma filas bizarras para tirar a tradicional foto com esse fundo aí, fiquem avisades e se possível evitem essa parte. Minha irmã e eu passeamos pelo parque e pelo palacete debatendo o quanto tem algo de insólito em ver essas construções, que são imagens claramente europeias, no meio da mata atlântica. Não casa, parece alguma fantasia bizarra.
Entramos na brisa que a latinidade é essa mistura violenta dos povos originários, povos escravizados e colonos europeus, estes importando hábitos que jamais nasceriam aqui, o que gera resultados por vezes insólito mesmo. Temos um imaginário que herdou muito da Europa e dos EUA, mas que entra em conflito com a nossa realidade no minuto que você olha ao redor ou se fita no espelho. O Brasil - e a América Latina - são profundamente influenciados, mas não fazem parte do imaginário do Ocidente. É uma posição estranha. Um não lugar.

V.
Li pela primeira vez Cem Anos de Solidão. Uma das cenas iniciais, que dá o tom do livro, é quando o patriarca da família Buendía e seus filhos vêem gelo pela primeira vez. O cenário é de fantástico, uma gigantesca pedra gelada guardada em um cofre. Eles tocam sua superfície com assombro. Ele sonha com uma cidade feita de gelo para aguentar o calor tropical. Mais para frente na história, forma-se uma fábrica de gelo.
Gabriel García Márquez é um dos grandes nomes do realismo mágico latino, mas se você ler a orelha do livro vai descobrir que essa cena na verdade é baseada em uma memória real. Ele teve a experiência de ver o gelo pela primeira vez. O realismo latino é mágico porque fantasia, ou porque conta sobre a experiência latina, tão estrangeira para a Europa?
VI.
Assisti um vídeo do Ora Thiago falando de Motel Destino - um filme que recomendo, por sinal. Ele fala sobre como gêneros estadounidenses tradicionais de cinema, tipo o noir, mudam quando chegam em terras brasilis. Não porque fazemos algo errado, como algumas pessoas teimam em dizer, mas porque nossa visão de mundo e contexto se embrenham com esses formatos importados. Surge daí algo novo, nosso.
Para bem e para mal, o Brasil e a América Latina se apropriam das imagens que importamos do passado e presente colonial. Surge daí algo nosso, às vezes cacofônico, às vezes opressivo, mas às vezes libertador.
VII.
A América Latina é uma região que sangrou e ainda sangra. Violenta, precária, o resultado da exploração e tentativa de assimilação. A latinidade, no entanto, existe - não intocada, até porque ela própria vem de choque e atrito de povos, mas ela teima em existir.
Sinto alguma coisa de subversiva na minha existência latina.
Ovelha recomenda
Como fazer um NOIR TROPICAL?, o vídeo do Thiago Ora, vale cada minuto
Eu assisti uma palestra da Erin Meyer em 2018 pela empresa que eu trabalhava, se não me engano, e apesar de extremamente centrada em relações corporativas, é uma perspectiva bem interessante. EU PAGUEI ACESSO A FERRAMENTA DELA, OK? apreciem o artigo
Cara, sobre latinidades, o terror latino feminino é TU-DO. Mariana Enríquez eu li Os Perigos de Fumar na Cama, e Monica Ojeda eu sou obcecada por Mandíbula
Sobre latinidades
E só pra não esquecer…
Meu livro de contos, Museu das Pequenas Falhas de Caráter, está à venda na editora Mondru!
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Meus textos na Delirium Nerd
Labirintos Digitais, falando sobre internet
Somos um povo de abstrações. A formação do nosso território exigiu isso de nós como povo para que sobrevivéssemos a tudo que passamos. É transformar toda o sofrimento em beleza.
Viva a gente!
Um beijo. Adorei o texto.
Que texto maravilhoso! Essa concepção de latinidade e toda sua ambiguidade ficou muito aflorada em mim, depois que mudei para o Canadá. Hoje, a abraço 100% e entoo o título do seu texto.
- a propósito, que honra ver link para o meu, ali embaixo. 🩶 obrigada!