Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo (praticamente) quinzenal das vozes da minha cabeça.
Eu queria ser terapeuta de famosos - de todos os tipos, da diva pop ao político. Quero muito entender como fica a nossa cabeça quando nos tornamos fenômenos culturais.
“Como assim?”
A vida famosamente não é fácil. Uma eterna lista de afazeres com as contas a pagar, decisões a serem feitas, relações a serem tocadas. Conviver com a realidade do ritmo inescapável do tempo, da fragilidade da saúde, sustos que a vida prega, a certeza da morte. Alguns grupos sofrem diferentes recortes de dores e pressões, mas a dificuldade, incerteza e sofrimento são essencialmente parte de qualquer experiência humana.
Agora, imagina alguém que além de ter que se adaptar a essas condições inegociáveis da nossa existência, também é um fenômeno cultural vivo. Como isso mexe com uma pessoa?
O TikTok me trouxe cortes da entrevista da Anitta no podcast Call Her Daddy. Naquele vídeo específico, ela respondia como ela aprendeu tantos idiomas. Primeiro, ela comenta “em entrevistas, quando estou interpretando o papel de Anitta, eu falo que aprendi buscando namorados de línguas diferentes. A realidade é bem mais tediosa…” (tradução livre e de memória). Ela diz que, na verdade, durante o processo diário de passar maquiagem e se preparar para shows, que possibilitavam duas horas sentada, ela tinha um professor ao lado.
Eu não achei a sequência exata dessa fala, mas a entrevista toca várias vezes nesse processo de criação da personagem Anitta.
Estou chamando de símbolos ou fenômenos culturais os artistas, políticos, influencers, jogadores de futebol. Seu alcance vai muito além de conhecidos, sua existência é simbólica e, lentamente, começam a transcender o status de ser humano. Quando alguém vira fenômeno, suas ações ganham camadas de significado, milhares criam expectativas, seu impacto é maior. A cobrança de coerência também, com cada fala e acontecimento registrado na TV e internet, e uma multidão de pessoas para analisá-los.
É um processo contínuo, onde é preciso alimentar esse status de fenômeno - Anitta e toda sua mística precisam estar sempre sendo nutridos, porque Larissa não é relevante. Quando fui tentar resgatar o vídeo do podcast pra ilustrar aqui, a principal notícia associada era uma só: quando a cantora explica como fazer sexo oral numa mulher. A mídia e o público, juntos, focam na Anitta - a transuda, a que o principal produto é a sensualidade, o símbolo cultural.
Hoje, com nosso consumo por redes, a profundidade da relação que criamos com famosos, essas pessoas-fenômeno, se aprofundou muito. Existe uma intimidade maior com essas figuras que, por definição, não são humanos completos - são performances.
Adoro o exemplo da Kylie Jenner, a integrante da família Kardashian que tem uma marca de beleza. Ano passado ela fez um vídeo divulgando produtos novos, gravado de dentro do carro - um formato clássico de TikTok, como fazem os reles mortais, aqueles que não são milionários. O vídeo causou uma algazarra na internet, com a pergunta que não quer calar: é algo autêntico, sem produção, ou parte de um plano maior de tornar o símbolo Kylie mais gente como a gente, autêntica? Teria ela toda uma equipe de produção do lado de fora do carro?
Larissa já é Anitta faz anos, já responde por esse nome por tempo demais. Sem dúvida as duas se entrelaçam, e o status de fenômeno modificou quem ela é. Sobre o que conversaríamos no meu consultório de terapia? Será que ser um símbolo te afasta demais da realidade, e seus problemas e paranoias vão ser difíceis para alguém como eu entender? Ou… serão só decepcionantemente banais?
Os gigantescos seriam meus favorito de atender - inclusive aqueles que saem da cultura pop, os bilionários, os que além do capital cultural tem o poder financeiro. Me pergunto muito o que o status de deus encarnado faz com a cabeça de uma pessoa: famosos com muito dinheiro e seguidores devem ouvir pouco “não”, perder lentamente a noção de restrições e limites. Elon Musk é o exemplo ambulante de como a falta de um limite ou um simples “não” podem mexer com a cabeça de alguém.
É doido pensar que humanos falhos, como eu e você, podem ter individualmente tanto poder. Mais doido ainda se pensarmos que o próprio status de símbolo deve mexer com a cabeça de alguém, de maneira muito profunda.
Se um dia eu abrir meu consultório, já sabem quem que eu espero tratar.
Recomendações da Bia
Uma entrevista: Conduzi minha primeira entrevista, com a maravilhosa
, na Delirium Nerd! Vai lá ler sobre as inspirações, pesquisas e olhares dela.Um livro: Estou na metade final de uma coletânea de contos chamada Irmãs da Revolução - que inclusive tem um conto da Aline. A antologia é de ficção especulativa feminista, com nomes como Octavia Butler, Ursula Le Guin e outras.
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Meus textos na Delirium Nerd
Adorei teu olhar, Bia! Tenho um medo assustador da fama, da pessoa que me tornaria se não tivesse alguém que me repetisse as palavras no ouvido "memento mori". Li outro dia sobre uma técnica de atuação de Hollywood que os atores nunca saem do personagem, e que isso os torna seres estranhos e insuportáveis. Acho que é por aí a vida de celeb! Bjs