Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo (praticamente) quinzenal das vozes da minha cabeça.
Eu só compro com entrega de menos de 24 horas.
iFood é muito prático!
Odeio conversa fiada e gente que não conheço.
Resolvo tudo por app, eu tenho pavor de falar no telefone.
Atenção. É difícil, eu sei, mas atenção!
Em um mundo com entrega expressa em menos de 24 horas, app de delivery/compras/exercício/amizade/namoro/sexo/trabalho/transporte/pagamento, hipercustomização de conteúdo/bens/serviços, IA generativa, feeds que nos engolem deliciosamente… a vida anda muito conveniente.
Não me leve a mal: ganhar dinheiro e manter uma vida digna é a mais difícil das tarefas. Criar família, então, nem se fala. No entanto, se damos um passo para trás e observarmos o resto, podemos constar que a vida anda bem… conveniente, tudo acessível na palma da nossa mão. Essa é a palavra: a vida tem sido exponencialmente mais conveniente a cada dia que passa e cada inovação tecnológica avaliada em milhões no mercado.
Somos pautados pelos 2758923482 aplicativos surgindo todos os dias para facilitar ainda mais nossa vida, vindo de um punhado de empresas de tecnologia. A Meta, a Alphabet, a Amazon e tantas outras tem um objetivo comum: experiências de uso sem atrito, para nos abraçar para dentro das telas e nos manter lá - seja para conectar com alguém, para consumir conteúdo, para fazer compras. É tão fácil! É como se sempre tivesse sido assim. Sempre houve dias de trabalho remoto, streaming, aplicativo de banco, cartão pelo celular, xaveco pelo stories. Reclamamos de uma série de vícios e excessos, mas trememos com a ideia de abrir mão das conveniências que vêm junto.

Venho aqui para que ousemos nos lembrar de tempos ancestrais, em que iamos para o escritório todo dia e tínhamos que arrumar conversinha de elevador. Éramos obrigados a sair de casa para conhecer gente, sempre insalubre. Tínhamos que ligar para o restaurante para pedir comida. Tínhamos que dar bom dia no mercado porque não tinha autoatendimento. Escrevíamos nossos próprios e-mails, como na pré-História.
Quando fui enumerar as inconveniências dessa vida passada, tive vontade de dar risada. Sei que é uma lista bem classe média, mas o que me pega é que elas são tão banais! Eu tinha que ESCREVER EU MESMA um e-mail????? LIGAR no restaurante???? Tinha que INSERIR O CARTÃO E DIGITAR A SENHA, como um animal?????
(Aqui vale o apêndice: o que é uma conveniência frívola para um, pode ser a acessibilidade do outro. Eu tenho noção de que apesar de eu não precisar da Alexa desligando luzes para mim, pode ser extremametne útil para alguém com deficiência ou idoso. Que o tempo rende diferente para quem tem menos privilégios, e que conveniências podem salvar o pouco que sobra. Ainda assim, me pergunto: será que o caminho é por aí? Aumentando produtividade e otimizando obsessivamente?)
Não venho aqui com uma postura antitecnologia ou simplesmente nostálgica de “tempos mais simples”. Vim aqui trazer uma angústia: com tudo na palma da mão, me vejo (nos vejo, na verdade) menos tolerantes, mais preguiçosos, com uma capacidade de atenção em franco declínio. Nos vejo menos hábeis para lidar com atrito e contato, apesar de sermos seres sociais e que, portanto, necessitam de contato e geram atrito por definição.

Jonathan Crary dedicou um livro inteiro para descrever como estamos rumando a uma sociedade verdadeiramente 24/7 - sem pausas, sem ciclos, sem repouso, sem atrito em seu funcionamento. No meio de uma suposta utopia tecnológica, desprezamos os processos orgânicos, as limitaçãoes inconvenientes. Soluços no caminho são intoleráveis. Não paramos de produzir, mas também não paramos de consumir com um nível sem igual de conveniência e facilidade.
Não diria, no entanto, que estamos felizes nessa roda de consumo e produção. Byung-Chul Han fala que vivemos um momento egóico, em que o Outro morreu, que a diferença existe apenas na medida que pode ser consumida, e que tudo se pauta na estética do liso. Crary fala do aprofundamento do individualismo solitário, e um vazio que não se preenche. Isabelle Stengers fala da nossa imobilidade anestesiada, nossa angústia com a realidade somada a sensação de incapacidade para mudá-la. Nos vemos assim, viciados em otimizar o tempo, irritadiços com a menor das inconveniências.
Pegar uma fila, escrever um e-mail nós mesmos, enfrentar uma conversa fiada, ligar no telefone. Lidar com conflitos de interesse, agenda, frustração. Precisamos do contato, e com ele teremos inconveniências. A vida é tão cheia de texturas, e o contato entre elas gera atrito.
Todos, todas, todes, uní-vos contra a vida sem atrito. A conveniência ainda vai nos isolar completamente, perdidos em mundo sem atrito dentro de nós mesmos.
Ovelha recomenda
Sou obcecada pelas esculturas do Johnson Tsang, o @johnson_tsang_art
Livros citados: No Tempo da Catástrofe, da Isabelle Stengers, 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono e Terra Arasada: Além da era digital, rumo ao mundo pós-capitalista do Jonathan Crary, A salvação do belo pelo Byung-Chul Han
Li “Quem matou meu pai”, do Édouard Louis - homenageado da Flip desse ano. Tem trechos meio sonho/peça de teatro misturados com histórias da infância, relatos sobre o pai, e análise socioeconômica. Interessante e curtinho.
Assisti Ainda Estou Aqui (2024), e Fernandinha tá que tá mesmo. História forte, do tipo que precisamos assistir e relembrar.
Quarto ao lado (2024), do Almodóvar, vale o aviso de gatilho do tema por ser tratar de câncer. Ainda assim leve, visualmente bonito, Tilda e Julianne arrasando.
Textos que me pegaram essa semana:
E só pra não esquecer…
Meu livro de contos, Museu das Pequenas Falhas de Caráter, está à venda na editora Mondru!
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Meus textos na Delirium Nerd
Labirintos Digitais, falando sobre internet
Adorei o texto e veio bem no momento em que conversava com amigas sobre essa busca por silêncio, isolamento e blindagem de interações sociais que tem cada vez mais pautado a vida em sociedade (no caso sem socialização).
Um beijo.
Pois eu adoro uma paradinha pra resolver analogicamente ♥️