Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo (praticamente) quinzenal das vozes da minha cabeça.
Texto escrito para um edital em 2023, reduzido e editado e pela primeira vez publicado hoje. Apesar de que sei que escreveria diferente hoje, acho que ele ainda se sustenta. Se não aparecer inteiro no e-mail, basta clicar em “continuar leitura”
Notas Introdutórias: Um país sem bandeira
Bem vindos ao meu país.
Estimam-se 5.16 bilhões de usuários únicos de internet, um número quase quatro vezes maior que a população da Índia.
Com o crescimento de acessibilidade e conexão, a divisão entre o online e offline se torna cada vez mais obsoleta. A cultura internética respinga constantemente no mainstream, influenciando e ditando conversas nas mídias tradicionais, na política e na vida cotidiana. Esse megazord sociocultural cresceu para desenvolver de idioma próprio a influência geopolítica, e vamos lhe dar uma licença poética pra denominar-se um país. Assim, será mais fácil de ilustrar seu papel no contexto global hoje.
Porém, é uma nação não consolidada, com grupos em guerra, dialetos específicos. A internet é impossível de ser compreendida como um bloco monolítico, e não é uma tarefa possível atribuir uma bandeira para este país tão jovem e fragmentado. Sua natureza de colcha de retalhos que atravessa o tempo, na verdade, recusa uma bandeira única e simbólica. Um país no sentido espacial, mas sem uma identidade nacional.
Hoje serei sua guia nesse espaço tão familiar. O dispositivo da sua escolha vai ser seu passaporte, avião, moradia, ponto turístico e praça pública. Recomendo que apertem bem os cintos, porque é muito fácil simplesmente se deixar levar.
O idioma visual e replicável
O vernáculo internético tem um charme inerente: a imagem é parte essencial. Do meme clássico em bonecos de palito da década passada ao sticker de Whatsapp, a imagem é parcela fundamental da conversa. As figuras são tanto propositivas quanto reativas, e a palavra escrita interage tanto com o texto completo quanto como um complemento, uma legenda, uma pergunta, uma rápida descrição de um print screen.
A natureza idiomática desse país também conta com o replicável. A viralização é um dos fenômenos que unifica seus habitantes: acompanhar o que todo mundo está acompanhando, rir (ou se indignar) da mesma coisa, ao mesmo tempo. O meme é um componente essencial da língua, e a palavra meme, no original grego, quer dizer imitação. Você só faz parte do grupo, só fala a mesma língua, se consegue replicar os mesmos memes.
Por fim, um grande influenciador na construção da linguagem é o algoritmo: sua capacidade de classificação e distribuição favorece padrões e fórmulas. Gírias, memes e formatos que têm sucesso na rede tendem a serem replicados à exaustão, na tentativa de ganhar relevância na conversa.
Essas são as diretrizes gerais, e a partir delas se constroem os dialetos. União nacional não é o forte do país internet, onde comunidades de interesses se formam espontaneamente, e para ser membro é preciso compreender qual o meme correto e qual o viral mais relevante dentro do grupo. Comunidades podem ocupar redes abertas, como fãs de Kpop do Twitter (ou, mais recentemente, X), mas sem entendimento da sua linguagem própria, não é possível fazer parte dela.
A(s) moeda(s) e economia(s)
A internet não tem uma economia única. Para a maioria massiva de seus usuários, métricas de redes sociais são a moeda de troca. Curtidas, tempo de visualização, retweets e reposts são riquezas criadas a partir da transação da atenção das pessoas, e têm um valor consolidado na internet. Tempos atrás, número de seguidores era uma contagem extremamente relevante – hoje, com a distribuição sobretudo algorítmica, que privilegia mais potencial de viralização do que a comunidade, ele tem menos importância. “Economia da atenção” é o nome popular do fenômeno, também apelidado de “economia da tensão” - o destaque pelo que gera reações fortes.
Essas moedas não têm uma conversão única para o dinheiro. Criadores de conteúdo monetizam suas plataformas na tentativa de viver profissionalmente de internet, e algumas redes os remuneram por visualizações. Ainda assim, a relação entre relevância na internet e a geração de poder aquisitivo é não linear e perigosa.
Enquanto isso, blockchain e criptomoedas marcam a tentativa de criar-se um mercado no sentido mais tradicional da palavra, com um caráter mais próximo de ativo de investimento do que necessariamente um meio de troca. Essa economia internética existe com pouca regulação e ainda sem acesso amplo do público - jamais poderia ser considerada a forma final da moeda internética, não hoje. O clique e a atenção seguem liderando no mainstream.
Nos bastidores, no entanto, uma economia consolidada se alimenta das transações cotidianas de atenção na internet. “Dados são o novo petróleo” é uma frase do matemático Clive Humby, de 2006, e afirma simplesmente que o valor dos dados estão em seu potencial – como o petróleo, precisa ser processado para se tornar riqueza. As grandes techs, plataformas que monopolizam e mantêm a internet rodando, trabalham ininterruptamente no processamento de dados e o subsequente uso dessa riqueza gerada.
A internet é um país de diversas economias, e sua população tem pouca clareza de como funcionam.
Qual o nome de um governo que não é eleito?
FAANG já foi o apelido popular para as principais empresas de tecnologia, ou big techs: Facebook (atual Meta), Apple, Amazon, Netflix e Google (atual Alphabet). Incluímos aí a ByteDance (empresa do TikTok), com ascensão subsequente à criação dessa sigla, e o Twitter/X - com relevância mais cultural e política do que financeira. Pensando em governos como centralizadores e reguladores, temos aí o governo internético.
Menos de dez empresas compõem as plataformas globais favoritas e centralizam a maior parte do fluxo de informação na internet. Esse monopólio permite a elas impacto político global, influência direta na regulamentação de dados e informação, além do acúmulo de riquezas nas mãos de sua elite corporativa. Com a evolução acelerada de inteligência artificial generativa, a OpenAI – empresa do ChatGPT – se junta ao grupo.
O fluxo de informação ininterrupto e onipresente da internet dá a seus habitantes uma sensação anárquica e descentralizada. As plataformas, no entanto, têm um controle inquestionável sobre esses fluxos: algoritmos, feeds e moderação não nascem na natureza, são criados com programação humana e decisões corporativas. Mesmo que essas empresas não ajam de forma unificada, elas são poucas e perseguem as tendências umas das outras.
A governança ensaia a discrição da neutralidade, mas é impossível de ignorar. Esse “governo” não tem nenhuma obrigação de levar em conta os interesses e bem-estar dos habitantes de seu país - que, mais precisamente, são consumidores, e não cidadãos.
Uma geografia feita de planícies escorregadias
Fruto de corporações, a geografia física da internet corresponde ao que esculpiram os criadores das suas plataformas – de consumo de informação, de conectividade, de compras, cada vez mais misturadas. Se a economia da internet depende de atenção e dados para rodar, é esse o interesse do monopólio tecnológico que a governa: reduzir qualquer fricção para o uso contínuo.
“Fricção” é um termo comum quando discutimos experiência de usuário, ou UX. Teoricamente, um bom design torna a interface o mais intuitiva possível, com os processos mais simples e reduzindo qualquer tipo de fricção ou atrito. A internet funciona na lógica de conveniência: a máxima é a simplicidade e velocidade de acesso, e o atrito de uma interface malfeita atrapalha esse propósito.
Onde, no entanto, termina a conveniência e começa o vício? É uma pergunta objetiva, não moral: o quanto uma redução contínua de atrito no uso de internet em geral e redes sociais em particular é de fato útil ou conveniente para as pessoas, e não só um alimento para o uso contínuo?
Formatos de feeds e algoritmos são os culpados etéreos pelo nosso vício em ficar online. Os responsáveis reais são os próprios governantes do país internet, que otimizam os formatos das redes para que seus habitantes jamais deixem seu espaço. Um país sem população não tem recursos para gerar riquezas.
Observando, então, a geografia física, fica claro: a internet é feita de planícies propositadamente escorregadias, nas quais deslizamos em velocidade constante, sem atrito, em uma inércia informacional ininterrupta. A facilidade de acesso tornou obsoleto o termo “conectado” - se nunca desconectamos, somos algo mais. Estamos sempre imersos, deslizando em frente.
Políticas... imperialistas?
Mesmo com uma identidade nacional fragmentada, a internet é um país de governo forte e presença inegável na geopolítica mundial. Seus atores têm impacto nos mais diferentes congressos, eleições e Estados nacionais, seja pelas escolhas de moderação e impulsionamento, seja por briga política direta (alô Elon Musk).
Além do impacto macro, as consequências micro têm se agravado. Liberdade cognitiva é o direito pela autodeterminação mental – basicamente, um termo que nasceu em resposta à realidade da internet. Com o monopólio das grandes empresas de tecnologia e a criação dessas planícies escorregadias de uso contínuo, começaram a surgir reações. Como proteger usuários dos impactos psicológicos e neurológicos do uso de redes, que são desenhadas pensando nos interesses das empresas por trás delas?
Como já dito, interfaces e algoritmos são os culpados etéreos, mas os responsáveis reais são as próprias empresas. Sem leis nacionais e restrições, a tendência do país internet é se expandir pelo globo sem discernimento – liberdade cognitiva é o direito em jogo nessa questão. Os Estados nacionais estão tentando correr atrás do prejuizo: na União Europeia, líder na regulação de redes ocidental, usuários podem colocar a ordem temporal nos feeds e desligar o algoritmo de recomendação do TikTok e do Instagram.
"Imperialista” pode ser um termo radical para o país internet. Ainda assim, a afirmação ganha força quando pensamos no contexto geral: o monopólio tecnológico está entre os Estados Unidos e mais recentemente a China, e a natureza das redes é de uma expansão assimiladora, com algoritmos que favorecem a padronização e desempoderam o local e regional. Tecnocolonização é o termo que o acadêmico Jonathan Crary utiliza para descrever esse desmantelamento do local em favor da modernização ocidental violenta.
A internet é terra de dicotomias: ao mesmo tempo em que favorece conectividade de todo tipo de gente, esvazia o que é diferente em nome do que é fácil de enlatar e distribuir. Os dialetos distintos refletem o país de origem de seus habitantes estrangeiros, mas não anula que fomos assimilados.
Cidadania compulsória
Mais da metade da população mundial está online – a dupla cidadania com maior penetração no mundo. O contexto cultural torna cada vez mais complexo não fazer parte da internet.
As redes, hoje, têm a sensação esquisita de serem simultaneamente reais e de mentira. Ao mesmo tempo que constituem um dos espaços de convívio mais importantes, também emprestam a impressão de que nada é muito sério, tudo pode ser dito, e não haverá consequências. A internet é a anulação do espaço e tempo, onde a distância não existe mais: tudo é aqui, e agora.
Onipresente e aparentemente onipotente, esse é o país em que praticamente duas em cada três pessoas também vivem, em adição à residência física nacional de cada um. Um país de estrangeiros e sem bandeira, pulsando com vida. O dispositivo da sua escolha é seu passaporte, avião, moradia, ponto turístico e praça pública.
Projeto 54 - últimos dias!
A El Cabriton está na décima quinta edição do seu projeto 54 - cinquenta e quatro artistas convidados, cada um para uma carta do baralho. Ele está no Catarse, e so vai ser impresso se bater a meta - falta 17%! Que tal adquirir esse baralho lindo???
Ovelha recomenda
Algumas referências:
, Jonathan Crary (Terra Arrasada: Além da era digital, rumo a um mundo pós-capitalista), Byung-Chul Han (Sociedade da Transparência e No Enxame, principalmente), Leticia Cesarino (O mundo do avesso)Faz tempo que queria usar as artes digitais lindas do Enkel Dika, o @buko2
Gostaria de REVOGAR minha recomendação da série Sr. e Sra. Smith, no Prime. Terminei, até que fiquei entretida, tem o Wagner Moura, mas o saldo é negativo.
Motel Destino (2024), do Karim Aïnouz, conta de um fugitivo que se esconde em um motel e trabalha para o casal dono do estabelecimento, no Ceará. Thriller em que a direção de arte e o elenco estão demais! (porém vale o aviso de que é cheio de sexo)
Outras leituras pela internet:
A história obsessiva do meu pai com Sandy & Junior, dos
Marcos Candido
postei um poema no instagram e descobri que era ruim, da
Clara Browne
A trilogia da traição, de Elvira Vigna, do
Eric Novello 🏳️🌈
E só pra não esquecer…
Meu livro de contos, Museu das Pequenas Falhas de Caráter, está à venda na editora Mondru!
Quer me seguir por aí?
Xwitter - @essabiamesmo
Instagram - @essabiamesmo
Medium - @essabiamesmo
Meus textos na Delirium Nerd
Labirintos Digitais, falando sobre internet