Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo quinzenal das vozes da minha cabeça.
Mainstream, esse conceito abstrato que serve de guarda-chuva para descrever o que é popular, praticamente unânime. Main significa principal, e stream pode ser lido como corrente, em sentido de rio - a corrente principal. Chamamos de mainstream o que é dominante, massivo, escalado à última potência de tamanho. É o rio principal de toda a rede fluvial, onde tudo desagua. Falar de cultura mainstream é pensar o que tradicionalmente está do lado oposto do cult e das contraculturas.
Esse termo ganhou força no século XX, com os novos meios de comunicação massiva - TV, rádio, cinema. Pela primeira vez, víamos a ascenção de um repertório cultural de entretenimento comum: as pessoas estavam consumindo as mesmas coisas. No ambiente gigante e impessoal da cidade, tão diferente da proximidade de uma comunidade menor, era inédito. Os chamados meios de comunicação de massa chegaram inundando os espaços vazios do modo de vida urbano. Criava-se um repertório cultural unificado nunca antes visto naquele contexto, com tanta gente.
Discutir sobre o mainstream era bem mais objetivo quando a gente pensa em um mundo pré internet. Um número limitado de canais de TV, estações de rádio, jornais. Mapear o que tinha maior visbilidade e circulação era, automaticamente, uma forma de entender o mainstream: as pessoas estava vendo as mesmas coisas. Se as mensagens tinham adesão ou não é outra história, mas o repertório sem dúvida era compartilhado.
O oposto do mainstream pode ser o undergound: o que flui debaixo do solo, discretamente, em menor escala. Movimentos como hippie, punk, gótico tinham pouca representação e voz no mainstream, mas se espalhavam, numa escala muito menor, pelos meios de comunicação underground. Zines, shows, livros independentes. No século XX, era bem mais simples entender e distinguir o que era o mainstream, e o que eram subculturas ou contraculturas underground, que surgem na margem ou na oposição.
O jogo virou e se embaralhou na vida contemporânea. A internet, com todo seu charme, deu um golpe pesado no mainstream como conhecíamos: o rio não tinha mais um fluxo único, porque além de consumir você também pode criar. A produção de informação e entretenimento se pulverizou, tanto com grandes corporações como também com pequenos criadores. A intensidade também mudou: com Instagram, Facebook, YouTube, Xwitter, etc, a gente tá simultaneamente produzindo e consumindo o dia inteiro.
Não podemos mais falar de um grande rio principal, indubitavelmente sendo consumido por todos. A TV segue forte - é lógico - , mas ela mesma se adaptou a esse cenário: trechos de programas rodando pelas redes, interação ao vivo com comentários online de quem tá assistindo, absorver estrelas que são nativas da internet - tipo a última influenciadora que foi brincar de atriz da Globo.
Além da direção e intensidade, mudou todo o mapa fluvial. A internet não tem 5 canais principais, mas sim 34235454353464, de tamanhos diferentes - afinal, dentro de cada rede tem uma infinidade de usuários produzindo conteúdo. Com os algoritmos que distribuem baseados em interesses, você recebe uma curadoria customizada especificamente para você dessas 34235454353464 possibilidades.
O próprio conceito de famoso fica mais específico. Um nome pode ser lugar comum pra você e ser completamente desconhecido por outra pessoa. Por exemplo, você sabe quem é EduKof, Rato Borrachudo, NomeGusta, Thássia Naves? São alguns dos maiores influenciadores do Brasil segundo a AirFluencers. Milhões de seguidores, e você pode nunca ter ouvido falar de nenhum desses nomes. Se no caso você sabe quem são, existe ainda uma probabilidade forte de que sua mãe, seu colega de trabalho, seu amigo de infância não façam ideia. Não é um conhecimento universal, é de nicho - mas é ao mesmo tempo gigante. Podemos chamar de mainstream nichado, ou isso mata o termo?
O mainstream morreu no seu conceito pé da letra, de um único rio que é consumido de forma unificada. Essa história de hipercustomizar vai diretamente contra o fluxo (rs) do que entendíamos como principal antes. Hoje, esse novo main tem mais a ver com formatos e repetições do que um conjunto unificado de imagens. O meme que você acredita que todo mundo viu provavelmente não foi o mesmo que sua mãe compartilhou com as amigas. Ainda existe, no entanto, uma unicidade: você duas estão compartilhando memes.
Esse é o cenário atual: podemos não estar mais todos vendo as mesmas imagens, mas elas são distribuídas da mesma forma. Tudo é conteúdo. O mainstream hoje, em vez de ser um repertório, é um formato. Em vez de ser um rio em específico, ele se tornou a própria água. Tanto faz se dessa ou daquela corrente, tudo é conteúdo. E quando absolutamente tudo é conteúdo, temos um novo fluxo massivo e inescapável. O que é underground em um mundo conteudizado?
O mainstream morreu. Longa vida ao mainstream!
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Meus textos na Delirium Nerd
Labirintos Digitais, falando sobre internet
Será que dá pra chamar de água? Ou chamamos de outro líquido menos potável...? Muitas questões. Gostei pacas do texto e como ex amante do underground, me sinto sem lugar nesse mundo nichado e massificado. Beijo
Adorei o tema do seu texto, que bom que nos encontramos, é legal demais ler sobre assuntos diversos da escrita (mesmo que de certa forma se interliguem). E obrigada pela menção!!