Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo (praticamente) quinzenal das vozes da minha cabeça.
Antes de começar, queria agradecer aos 1000 inscrites. Obrigada!!! Feliz que minha escrita tá chegando em pessoas, principalmente quando gera conversa. Lembrando que está sempre aberta a opção de assinatura paga também, caso queria dar outro tipo de apoio :)
Minha rotina mudou muito nos últimos meses com o mestrado, e isso está afetando um pouco a minha escrita. Talvez tenha uma redução na frequência de textos, com o Tricotando entrando de vez em quando na rotina quinzenal em vez de ser uma edição extra. Vamos testando!! Elimine conteúdo você também.
Obrigada de novo pela leitura, e voltemos à programação normal.
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“Sua nuvem está quase cheia”, me disse o Google. "Em breve você não irá conseguir salvar suas fotos”, me alerta ele em toda oportunidade que tem. Estou enrolando o máximo possível a tarefa de avaliar quinze anos de conteúdo guardado em email, fotos e drive para dar uma enxugada em tudo e liberar espaço. Desde que pegaram na minha mão e falaram que a memória do celular não é o limite, e que as coisas seriam colocadas nesse lugar mágico e extracorpóreo chamado NUVEM, eu fui pouquíssimo cuidadosa com a quantidade de coisa que eu salvo. Tem espaço! Tá na nuvem.
Não é mais o caso, pro meu azar - o espaço está acabando, e eu preciso arrumar mais.

A palavra nuvem começou a ser usada na computação em 1997. É um termo guarda-chuva que pode ser resumida como rede de servidores, oferecendo serviços como armazenamento, processamento e acesso remoto. Nosso Google Drive e iCloud são nuvens, os filmes do Netflix estão numa nuvem, seu trabalho de escritório usa alguma nuvem. A nuvem é a infraestrutura que permite que uma série de coisas fiquem ali, guardadinhas na internet, prontas para serem acessadas.
Logicamente, construir uma rede de servidores não é algo barato ou fácil de fazer em pequena escala. Se você precisa de serviços de nuvem, é muito mais fácil você pagar alguém que já tem a estrutura existente do que encarar a empreitada de começar algo do zero. Entra aí uma dimensão de Big Techs que você possivelmente não sabia: o mercado de nuvens! Um modesto mercadinho que gerou 91 bilhões de dólares no último trimestre de 2024. A Amazon é líder nesse mercado, com 30% do marketshare, seguida pela Microsoft (21%) e o Google (12%). Juntas, elas contam mais de 60% da coisa toda - um dia normal para o super competitivo e nada monopolístico vale do silício.

Como tudo hoje é online, esses serviços são questão de infraestrutura, para muito além do mundo corporativo. Manja debates sobre licitação de transporte? Saneamento básico? Energia elétrica? Se tudo é online, infraestrutura de nuvem e de internet é um debate fundamental. O sistema bancário brasileiro já passou 50% dos dados pra nuvem, por exemplo. E mesmo essas estruturas no geral passam pelas empresas, privadas e dos EUA, que citei lá em cima. Existem questões complexas de soberania, em que o Brasil anuncia ser o único governo com uma nuvem 100% soberana do Sul global, tentando tornar essa infraestrutura menos dependente de empresas dos EUA. Estamos falando de toda uma materialidade de mercado, governança e infraestrutura.
E já que estamos nessa toada, vale compartilhar uma anedota: dois anos atrás o Elon Musk negou suporte de satélite Starlink para a Ucrânia, que usaria o acesso para lançar mísseis na Crimeia. Starlink, pra quem não sabe, é um sistema de satélites da SpaceX, que promete conseguir providenciar internet globalmente, inclusive em áreas remotas. A Ucrânia precisava de acesso para poder acionar o armamento, e o desquerido tomou essa decisão porque considerava o risco de resposta nuclear russa ‘grande demais’. Sim, o Elon Musk, que em 2023 era apenas mais um insípido CEO, tomando decisões de impacto geopolítico, porque ele……….. é dono de uma empresa de infraestrutura! Quem diria. Independente de onde você cai no espectro político, não é pra ser uma conta difícil entender que quanto mais da sua estrutura depende de outros países e entidades, mais você fica a mercê deles. Pois é.

Infraestruturas não são construções mentais, elas são físicas, ocupam espaço, consomem recursos. No caso de data centers e outras coisas que precisamos pra manter a digitalidade funcionando, é BASTANTE consumo de recurso, inclusive. Por isso que fica bem fácil levar a questão da infraestrutura da tecnologia como internet, nuvem e inteligência artificial para o lado ambiental. É um gasto gigantesco de energia ininterrupto, tanto para manter a coisa funcionando quanto para garantir um sistema de resfriamento para que nada exploda.
O consumo é tanto que existem data centers nucleares, pegando energia direto da usina. Eu trago essas coisas aqui não para apelar ao militante ambiental potencial que vive no seu coração, mas pra trazer a materialidade da questão. Conta rápida de padaria: um megawatt abastece cerca de 400 residências no Brasil, segundo essa fonte. Se a Amazon adquiriu um campus de data center nuclear na Pensilvânia com planos de gerar 960 MW, estamos falando do equivalente a 384.000 residências brasileiras sendo usado única e exclusivamente para manter os servidores rodando desse campus específico. Pensa que só a Amazon tem 125 deles espalhados pelo globo, de tamanhos e fontes energéticas variadas.

Eu espero que a essa altura do texto, o nome nuvem tenha ficado completamente contraintuitivo. Essa noção de intangibilidade e onipresença, de algo que encontramos no ar, não cabe nessa foto aérea de um campus nuclear. Existe um imaginário de intangibilidade com essas tecnologias - como se não fosse possível apontar ‘onde’ está a nuvem, ou de onde vem a internet. É metafísico, é como o éter… está no ar. Eu venho aqui na missão de contrariar esse imaginário. A digitalidade não é uma abstração. Podemos tocar com as mãos na internet e na nuvem.
Elas são até capazes de pegar fogo, de forma bem literal.

Dia desses, eu li sobre o surgimento do telégrafo (sim! foi por obrigação), e nesse texto do James Carey ele aprofunda sobre as mudanças culturais que rolaram no processo. Eu gosto particularmente de uma das questões ideológicas que surgem ali, chamada de ‘sublime elétrico’. Essa tecnologia que de repente elimina distâncias e muda a relação com o tempo cria um imaginário quase religioso ao redor. É a tecnologia! Ela nos faz viajar no tempo e no espaço! Ali, no século XIX, o morse tocando adoidado na maquininha do telégrafo e enviando mensagens de um canto do cabo a outro, o que é tecnológico parece mágica.
Afinal, o primeiro cabo submarino de telégrafo rolou em 1851, e o Brasil já estava diretamente conectado a Portugal por um desses em 1874. Foi revolucionário! Não dá pra não pensar na internet hoje, que funciona por uma porção de servidores, data centers e cabos submarinos (de fibra óptica, diferente de nossos ancestrais), mas a gente não reflete sobre. Eu sinto que essa ideia de sublime elétrico segue no ar, com os cabos escondidos no fundo do oceanos e os data centers enfiados em vários cantos do globo.

A internet pode, além de ser pega com as mãos, ser mapeada de forma precisa se seguirmos os cabos que viajam de um continente para outro carregando coisas importantíssimas como a foto do papa franscisco de balenciaga ou a notícia falsa que seu parente te encaminhou ontem. Mesmo essa ideia de internet por satélite, que passa essa noção de estar ali flutuando no ar, conta com dispositivos de 200 quilos sendo enviados pra nossa órbita, e com ground stations recebendo e triando dados e tráfego. A internet, a digitalidade, a tecnologia - todas elas ocupam espaço.

Por isso que expansões e investimentos não são só números no jornal. A OpenAI começou uma nova companhia, a Stargate Project, que vai investir mais de 500 bilhões de dólares nos próximos quatro anos para construir mais infraestrutura de inteligência artificial nos Estados Unidos. A OpenAI também está correndo atrás de lançar um campus de datacenter gigantesco em Abu Dhabi, de 5 gigawats (quatro vezes aquele nuclear da Amazon hihi), parte do que pode se tornar um dos maiores projetos de infraestrutura de IA no mundo. Inteligência artificial não é uma entidade espiritual, é uma série de zeros e uns guardada dentro de servidores e data centers que gastam água e energia para se manter funcionando.

E é por toda essas questões que ler uma proposta do nosso ministro da economia querendo desonerar data centers para que empresas dos EUA construam no Brasil para atrair um investimento trilionário e barganhar espaço de uso nesses servidores é algo que me deixa…. pensativa. Já existem campi em território nacional, mas isso é um movimento bem robusto de atração. O Milei tá numa brisa dessa também, falando de data centers de IA com energia nuclear na Argentina. Bastante grana rolando nesse mercado, né? Tem aí questões ambientais e de governança bem densas. Um vespeiro que, hoje, não irei mexer! Que sorte a minha.
Espero ter confrontado um pouquinho das vibes sublime elétrico e digitalidade intangível nas nossas cabeças. Ainda não resolve meu problema, então vou lá no drive apagar arquivos, para ter espaço para as novas fotos que quero tirar.
Ovelha recomenda
Li Sem Despedidas, da Han Kang, e gostei bastante (bem mais do que o anterior, Lições de Grego). Como escritora ela mexe com formatos bem diferentes em cada livro pra contar as histórias, e gostei de ver mais uma exploração nesse livro.
Não tenho mais recomendações, to só lendo coisa acadêmica e vendo filme ruim é isso beijo pra vocês
E só pra não esquecer…
Meu livro de contos, Museu das Pequenas Falhas de Caráter, está à venda na Amazon!
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Meus textos na Delirium Nerd
Labirintos Digitais, falando sobre internet
Nossa, que texto bom e bastante informativo! Já vou compartilhar com amigos
Que texto ótimo! Parabéns Bia, que a news siga sendo um sucesso ❤️