Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo (praticamente) quinzenal das vozes da minha cabeça.
Em junho, a Amazon foi centro de mais uma polêmica: o iliad flow, ou fluxo ilíada, veio a público. O codinome carinhoso invoca a Ilíada de Homero - uma jornada épica - para falar sobre cancelamentos nas inscrições do Amazon Prime. A assinatura inclui melhroes ofertas e tempos mais rápidos de entrega, além de acesso ao streaming Prime Video. O fluxo ilíada nada mais foi que uma série de táticas e ajustes que tornam o processo de cancelar o serviço mais difícil (pop-ups de ofertas, “lembre-me depois”, combos e distrações no geral). No papel, um sucesso: no seu auge, reduziu 17% de cancelamentos em 2017.
Além da óbvia propaganda negativa, a Amazon também vai ter que responder pra FTC (Federal Trade Comission), já que a falta de ética e transparência violou uma série de regulamentos. A própria documentação sobre o fluxo não foi entregue em investigações anteriores, agravando a questão.
O caso é um ilustrativo de um princípio do design, principalmente quando pensamos em interfaces e experiência de usuário, ou UX. A palvra atrito, ou fricção, aparece com frequência: são os obstáculos para um processo mais suave e intuitivo. Aqui, a Amazon trabalhou no conceito por duas vias: uma inscrição tão sem atrito que as pessoas assinavam o serviço de forma acidental, e um cancelamento tão cheio de fricção que as pessoas se perdem no caminho.
A lógica de uso da internet hoje é baseada na minimização de atrito. Feeds e linhas do tempo cada vez mais integradas, imperceptíveis, lisas, que nos puxam para dentro do uso contínuo sem que notemos de fato. Sem nenhum obstáculo, entramos em inércia: o movimento em velocidade constante e sem hora para acabar. Um apelido carinhoso que uso para falar sobre isso é inércia informacional - o nosso consumo initerrupto de informação diário. O primeiro episódio do meu podcast foi sobre isso, a quem interessar possa.
Foi lendo A salvação do belo, de Byung-Chul Han, que fiquei refletindo sobre o atrito versus o liso, e o que isso significa para nós. Ele descreve como a beleza, para ser consumível, se torna lisa: as diferenças são sempre digeríveis, consumíveis, tudo é rotulável, um grande oceano de pessoas idênticas. Estamos no “infernos dos iguais”, onde a comparação obsessiva nos padroniza. Entre pessoas, objetos e redes, ele chama isso de “estética do liso”. O primeiro capítulo dedica um momento pra falar o quão inócuas são as obras de Jeff Koons, que corporificam essa estética - “são, por assim dizer, lisas como um espelho (…) O Balllon Dog não é um cavalo de troia. Não oculta nada. Não há interioridade que se ocultaria atrás da superfície lisa.” (p.12/3 na edição da Editora Vozes.)
Os caminhos da internet são bem lisos. Patinamos por eles com tanta facilidade e nos acostumamos a esse nível de conveniência. Ela está cada vez mais arraigada na vida contemporânea: aplicativos para tudo, com entrega instantânea, preço mínimo, conveniência máxima. Estamos praticamente viciados nessas jornadas quase escorregadias de tão lisas.
Por outro lado, a vida tem arestas, pontas, textura. Por mais que a gente tente fingir que não, toda essa conveniência lisa não reflete nosso estado orgânico. Nós funcionamos, mas trancos e barrancos são parte da jornada - física e emocional. Nossas texturas se atritam com o outro, com o mundo, com o tempo. Nosso processo individual e quem somos deve bastante às texturas e atrito que nos deparamos pela vida.
O progresso lógico de consumo, hoje, é pelo liso máximo. Avançamos pela conveniência em detrimento de praticamente tudo, independente do que (ou quem) fique no caminho. Querem se livrar do atrito, mas não sei se é saudável tudo tão liso assim. Vamos escorregando pra frente em inércia - sem saber muito bem pra onde estamos sendo levados.
Avisinhos
Estamos (eu) trabalhando para não só recuperar a assiduidade, mas decidir por um dia da semana final para envio e possivelmente aumentar frequência. Como??? Vamos descobrir.
Nesse meio tempo, é isso aí. Obrigada por ler e compartilhar <3
Ovelha recomenda
Revisitei bastante o Byung-Chul Han pra escritos nessa semana, então vou indicar aqui. Eu gosto da forma que ele descreve o mundo atual - com uma ou outra reserva. O mais famoso é Sociedade do Cansaço, mas gosto bastante da Agonia do Eros e No Enxame: Perspectivas do digital;
Elliane Esquivel é uma artista que me deixa sempre apaixonada
Uma newsletter: 1 minuto para salvar o dia é o último texto do
, e espero que também salve o seu;Um lembrete de que o processo de escrita é cheio de dúvidas sobre o que escreve - um note da
(inclusive, ela está montando um curso de escrita para apoiadores, e se eu fosse você eu iria lá agora);A crônica morreu? (não) A
escreve uma crônica como prova de vida e comemoração dos mil inscritos (parabéns Paula!);A segunda temporada de Good Omens (ou Belas Maldições) está no Prime Video, pra quem assinou acidentalmente e não conseguiu cancelar rs está uma graça <3
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