Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo (praticamente) quinzenal das vozes da minha cabeça.
Você já deve ter visto alguma versão desses vídeos: objetos comuns que alguém do nada corta uma fatia e revela um bolo. A confeitaria realista cresceu nos últimos anos, e na briga por chamar a atenção no meio das redes sociais, objetos cada vez mais elaborados foram replicados em bolo. Segundo uma busca no Google e um curto diálogo com ChatGPT, descobri que essa trend começou a viralizar na internet em meados de 2020. “Is it cake?” - isso é bolo - se tornou uma pergunta meme.
Não é difícil entender porque essa tendência cresceu: os bolos são impressionantes, e todo vídeo que você vê se torna um jogo - onde está o bolo? Como é de praxe no capitalismo tardio, essa trend já foi apropriada e se tornou um produto, mais precisamente um game show. “Isso é bolo?” lançou sua terceira temporada na Netflix, e a série tem bolos impressionantes e nenhum carisma.
Mikey Day é um ator e comediante, e apresenta todas as temporadas do programa. Difícil saber se a questão é ele, o texto, a própria premissa de bolos realistas, mas mesmo reclamando eu vi todos os episódios. Assistindo o apresentador brandir uma faca que nem um maníaco, tentando cortar fatias de bolos e de objetos comuns que foram confundidos com bolos, me pego pensando em como a gente anda meio maluco. Não tem como, se não dá pra confiar mais nem em objeto inanimado, quem vai conseguir ficar normal?
O mundo já está complexo de se navegar faz um tempo, principalmente quando falamos de mídias e telas. Hoje temos inteligências artificias generativas e bolos ultrarrealistas, mas montagens e fake news existem há bem mais tempo. Se uma parte substancial do nosso contato com a realidade é via internet, a dificuldade de distinguir o real do fake bagunça demais nossa percepção de mundo, e até a nossa identidade.
Afinal, a internet demanda desconfiança. O que me pega é que precisamos ser desconfiados com as coisas grandes e importantes, como notícias, épocas de eleição, figuras públicas, mas não só. Eu sou obrigada a desconfiar de qualquer coisa, de fato curioso a objeto inanimado, porque ele pode ser um meme que eu não entendi, um erro ingênuo, desonestidade intelectual, uma foto gerada por IA, um BOLO. Não se pode confiar nem no banal.
Lembro quando a foto do Papa Franscisco de Balenciaga rodou a internet. Tão inusitada quanto inofensiva, eu nem registrei direito que o formato do casaco não combinava com uma figura papal. Eu não acompanho nem o Vaticano nem a Balenciaga, mas dias depois descobrimos que a foto foi gerada por inteligência artificial, e a culpa é NOSSA por ser ingênuo: a mão direita está esquisita, você não notou???? Os sinais são ÓBVIOS, disseram alguns. Pois eu não vi, porque não tinha o porquê ficar caçando sinal nenhum.
O papa com uma jaqueta puffer não muda diretamente a minha vida. Ainda assim, se uma multidão de pequenas coisas que não mudam a minha vida se juntarem, talvez algo aconteça, sim. É preciso estar alerta e desconfiado de todos os estímulos, o tempo todo. Um baita gasto de energia, porque nosso cérebro não foi feito pra trabalhar dessa forma.
Existe também a questão que atualmente as redes têm algoritmos que privilegiam respostas emocionais intensas. A floatvibes coloca isso lindamente como “economia de tensão”: tem tanta informação, imagem, conteúdo competindo pelos nossos olhos, que o que se destaca (e portanto é mais rentável) é o que causa emoções fortes. Não necessariamente o que a gente gosta, mas o que gera raiva, é bizarro, tenso ou, simplesmente, inusitado de forma meio absurda.
Viver com a referência de realidade tão instável somado com esses nervos à flor da pele da economia de tensão é exaustivo demais. Inclusive, teorias de conspiração e grupos “anti estrutura” florescem muito nesse contexto de incerteza marinado pela distribuição internética. Esses grupos oferecem um terreno sólido para formação de identidade e “estabilização” da realidade, aliviando muito dessa exaustão e incerteza que a gente sente.
E para quem não sofreu radicalização ou encontrou paz entrando numa seita, nos resta o que? São muito mais questionamentos do que certezas, e se não posso confiar nos meus sentidos, no que confiar? Se não sei nada sobre o mundo, será que sei algo sobre mim?
O meme pode ser “antigo”, mas o espírito do tempo persiste. O mundo do avesso é uma experiência bem esquisita, porque nos vira do avesso também. Se eu não vi o que tem debaixo da minha pele, não existe uma chance de eu descobrir algo estranho?
Me resta repetir pro espelho que eu não sou bolo, e resistir à tentação de morder meu dedo.
Ovelha recomenda
Uma referência grande aqui nesse texto foi o livro Mundo do Avesso: Verdade e política na era digital (2022), da Leticia Cesarino. Sempre recomendo!
Eu já recomendei O Livro dos Pássaros (2023), mas queria incluir na brincadeira Como Lidar com seus Fantasmas e Como Abraçar um Fantasma, os três da mesma quadrinhista, Lark. Sou fã dela, e tive a chance de entrevistá-la pela Delirium Nerd!
Eu descobri o curta de animação Gruff (2024) no TikTok. Ela foi feita ao longo de três anos por uma única pessoa, com bonecos de papel. Vi pedaços dos bastidores, e é apaixonante assistir o processo criativo do cara. O resultado ficou um charme, e pra quem tiver interesse nesses conteúdos que comentei, estão no canal Righteous Robot.
Na toada de curtas de animação independente, Outgrown (2023) é outra que achei bem legal. Esse é em 2D!
Para quem tem Mubi, 27 é um curta húngaro sobre Alice, que vai comemorar seu aniversário de 27. É bem brisa visual psicodélica, também em 2D.
Textos interessantes que li por aí:
como entreter seu irmão do oturo lado do mundo, da
Não prometo nada #28: paranoia, incels e o Coringa, da
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E só pra não esquecer…
Meu livro de contos, Museu de Pequenas Falhas de Caráter, está à venda na editora Mondru!
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