Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo (praticamente) quinzenal das vozes da minha cabeça. Palavras minhas, misturadas com obras de arte de artistas que admiro.
Mais de cinco bilhões de pessoas no mundo têm acesso à internet. Dessas, 90% estão em redes sociais. Isso dá mais ou menos 4.7 milhões de realidades que, de tão hipercustomizadas, se tornaram paralelas.
Enxergar nossa ligação com as redes como uma realidade própria e pessoal não é inédito. Em 2016, a pesquisadora canadense Wendy Chun cunhou o termo microfeudo digital, para traduzir esse senso que desenvolvemos de imperadores do nosso próprio espaço. Seguimos, curtimos, comentamos, xingamos e bloqueamos, nos sentindo autoridades supremas de nossa experiência nas redes. Estamos em eterno feedback positivo, recebendo conteúdos homofílicos - que gostamos e reforçam nossos pontos de vista. A impressão que fica é que nossa experiência - altamente específica - é universal.
Redes sociais se aperfeiçoaram muito para construir esse sentimento. Um algoritmo é, no seu significado mais simples, um conjunto de instruções que são usadas para realizar uma tarefa. Nas redes, estamos falando de uma ferramenta criada e treinada para entregar conteúdos que engajem, mantendo usuários na plataforma o máximo de tempo possível. A partir de dados gerados por esses mesmos usuários, ele se aperfeiçoa e executa a tarefa com cada vez mais precisão. Curadoria de conteúdo algorítmica é retroalimentativa e muito eficiente na sua tarefa, como você pode pereceber pelo seu tempo de uso de smartphone. É bem difícil nos desvencilhar dos nossos feudos hipercustomizados.
Eu já comentei mais de uma vez por aqui o quanto as redes sociais mexeram na nossa noção de espaço e tempo - tudo é aqui e agora. Esse aqui e agora é diretamente influenciado por algortimos, curando nossa realidade imediata própria . A minha vai ser diferente da sua, mas ambas são igualmente reais: como coloca lindamente Chun, o usuário passa a entender como verdadeiro tudo aquilo que chega no seu smartphone.
Se as redes são intermediadas pela curadoria algorítimica, é justo afirmar que uma parte substancial do nosso contato com a realidade é intermediada pelos algoritmos. Diferente de um modelo de mídia mainstream e bem menos customizada - como a TV, por exemplo - essa intermediação não é compartilhada. Não estamos assistindo as mesmas coisas, e os pontos de vista se fragmentaram para um número próximo do infinito - daí a ideia de realidades paralelas.
Não sei se existe outro momento na História em que o nosso contato com o mundo tenha sido tão individualizado. Essa realidade contemporânea, além de hipercustomizada, se torna solitária. Se toda nossa vivência parte de um lugar único e individual, a nossa própria mente, é como se não existisse mais ninguém além de nós. Uma existência altamente solipsista.
Cabe explicar o conceito: solipsismo surgiu mais ou menos no século XVIII, época da filosofia fortemente influenciada por Descartes e seu penso, logo existo. É a noção filosófica de que, além de nós mesmos, temos apenas as nossas experiências. Essencialmente, a pessoa solipsista se enxerga sozinha no mundo - porque não poderia garantiar que nada mais é real. Esse conceito põe em dúvida tudo que não é o eu e suas sensações, o que acaba reduzindo outras pessoas à inexistência. Você só existe quando eu te percebo, e não tenho garantia de que você é algo além de uma projeção da minha cabeça. O solipsismo é egóico no sentido de que nada existe fora do eu, o colocando no centro do mundo, como se tudo fosse uma projeção dessa mente única.
Esse é mais um conceito do que uma corrente filosófica de fato - um exercício mental que vários filósofos já tentaram elaborar. Transpondo essa noção para o século XXI, ela se torna perigosamente identificável: afinal, tudo que eu consumo no meu celular é reflexo do meu próprio comportamento de consumo. Vivenciando uma realidade intermediada por algoritmos, realmente enxergo apenas a projeção de uma mente única - a minha. Assim, mergulho em uma forma muito pura de solipsismo: o algorítmico.
É irônico pensar que redes sociais venderam, durante muito tempo, o mote de conexão. Hoje vivemos em grande escala sozinhos em nossos microfeudos digitais, meramente consumindo conteúdo em vez de se conectar de fato. Enxergar o outro é nadar contra a maré da lógica algorítmica homofílica, e o futuro parece ser o distanciamento em bolhas. Torço pela regulação das redes, pelo debate aberto sobre liberdade cognitiva, e a conquista dos nossos neurodireitos. Se não, a armadilha segue pronta: nos vermos sozinhos, vivendo o delírio de grandeza e centralidade de um solipsismo algorítmico.
Ovelha recomenda
Maria Guimarães é uma artista brasileira que mora em Lisboa, e eu estou absolutamente apaixonada pelo tipo de realismo colorido e simbólico que ela pinta. Virtual Vertigo, que coloquei para ilustrar a newsletter, é uma obsessão minha.
Estou lendo Mundo do Avesso - Verdade e Política na Era Digital, da Letícia Cesarino, e estou devorando cada página. Foi lá que conheci a Wendy Chun, citada no texto.
Assisti Os Rejeitados, indicado ao Oscar. Roteiro gostosinho!
Textos que me pegaram esses tempos:
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Meus textos na Delirium Nerd
Labirintos Digitais, falando sobre internet
Que texto foda, Bia! É bem isso, mini feudos mentais para uma ideia que nasceu para ligar o mundo de ponta a ponta. Quando vejo o que a Internet é hoje pós redes sociais, me sinto ingênua de ter proposto meu mestrado (defendi em 2012)... Eu era uma grande idealista, tadinha. 🙃😂