Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo (praticamente) quinzenal das vozes da minha cabeça.
Se acostumar é não conseguir mais diferenciar as tragédias dos dias normais.
Cidades Afundam em Dias Normais (2020) - Aline Valek
Eu já escrevi esse texto dezenas de vezes, no meu diário. Também devo ter lido versões dele uma centena de vezes, desde argumentos elaborados até reduções no formato de um Tweet. A verdade é que essa sensação não é especial, inédita, nunca pensada antes - ela se tornou perigosamente habitual. Durante a pandemia, eu apelidei o sentimento carinhosamente de “apocalipse crônico”.
Não é difícil captar essa sensação que está no ar, no espírito coletivo do tempo. Em 2022, o dicionário Collins elegeu como palavra do ano o neologismo “permacrise”, criado pra descrever a sensação de crise permanente. Pensando no encadeamento de eventos que passamos nos últimos muitos anos - crises econômicas, a acensão global da extrema direita, a pandemia, o avanço inveterado de tecnologias que mudaram e mudarão o mundo, a penetração violenta da internet em uma sociedade iletrada para lidar com sua velocidade -, “permacrise” parece uma descrição objetiva.
O ano de 2023 veio se juntar à sequência de desgostos e incertezas trazendo um mercado de trabalho com demissões massivas e, também, a concretude inegável da emergência climática. O apocalipse, que me parece crônico há algum tempo, deixa de ser um conceito filosófico para falar do nosso estado emocional e de nossas convenções - tipo o dinheiro, a política - para falar de algo muito real. Não é alarmismo falar sobre o clima: nós mudamos a forma que o mundo opera. Agora, estamos lidando com as consequências.
Esse texto, que já escrevi dezenas de vezes, tem um desespero específico. Mais do que reconhecer a realidade dolorosa da permacrise, da sensação de apocalipse crônico, do medo do futuro, existe um paradoxo que vive na minha cabeça sem pagar aluguel: é a normalidade insuportável com a qual escolhemos viver o fim do mundo.
Na pandemia, era gritante - o “novo normal”, a adaptação (de quem tinha o privilégio) para o trabalho remoto, o cotidiano seguindo enquanto as mortes se empilhavam no jornal. A surrealidade política da época: os absurdos que o então presidente falava diariamente. Eu trabalhava em empresa gringa, e lembro nitidamente que durante os ataques ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021 nos EUA, os colegas estado-unidenses comentaram a estranheza de estarem trabalhando normalmente enquanto ocorria uma tentativa de golpe de Estado.
Essa sensação persiste, a estranheza de viver normalmente enquanto crises acontecem lá fora. A verdade é que já lidamos com o absurdo faz um tempo, e normalizá-lo foi o principal caminho escolhido. Não podemos parar: nos agarramos a uma rotina nem sempre feliz mas ao menos normal.
Eu entendo o apelo, na verdade. Viver fora da normalidade é insuportável: quando somos jogados nesse espaço, o impulso é pelo retorno à zona de conforto, ou então reimaginá-la para se adaptar à nova realidade. Já vi em algum lugar que, às vezes, é melhor chegarmos ao fundo do poço a fim de fazermos alguma mudança, do que ficarmos no limiar do terrível. No limiar, conseguimos nos adaptar. No fundo do poço, não temos alternativa além da mudança.
A questão é: não chegamos no fundo do poço? É sério? Temos parcelas gigantes da sociedade que vivem em condições insustentáveis - indígenas, população LGBTQIA+, população negra, para citarmos algumas no contexto Brasil. Mesmo quando fora de situações extremas, o grosso do mundo é obrigado a dedicar a maior parte do seu dia para o trabalho, que gera riquezas para as poucas pessoas que estão no comando. A pressão pelo desempenho é constante, infligida externa e internamente, e leva ao exaustão físico e emocional. “Hoje, o indivíduo se explora e acredita que isso é a realização.”, escreve Byung-Chul Han em Sociedade do Cansaço.
Creio que esse apocalipse que vivemos é inevitável: nosso modo de vida não vai durar para sempre. Na velocidade que consumimos o mundo, não há díuvida de que ele vai nos consumir de volta. As estruturas de poder que sustentam nossa realidade - e que se apoiam fortemente na opressão de vários grupos - têm tentado se adaptar, mas são cada vez mais questionadas. Nada dura pra sempre. Esse apocalipse crônico é a sensação transitória que vem do fim inevitável.
Mark Fisher, teórico britânico autor de “Realismo Capitalista” (publicado no Brasil em 2020), aponta o sucesso do capitalismo em colonizar nosso imaginário. Temos mais facilidade imaginar o fim do mundo do que fim do nosso modo de vida atual. “Conseguiríamos consumir menos? É da nossa natureza uma realidade mais competitiva do que cooperativa?”. Talvez seja daí que vem essa paralisa que se impõe na sustentação de uma normalidade ridicula: não conseguimos imaginar o fim, e nem o futuro além dele. Não vemos possibilidade de mudar, então seguimos os mesmo.
Porém, o fim vem. Tudo acaba, por mais que finjamos que não - a História está aí de eterno exemplo. O ponto é se vamos escolher, enquanto sociedade, ter uma voz ativa nesse fim e recomeço, ou se vamos assistir a ruína literal e metafórica do nosso mundo paralisados.
É o final dos tempos, alvos templos
Salvos mesmo, nenhum de nóis
Às vésperas de um grande salve-se quem puder
Sendo tratadas como um dia qualquerFinal dos Tempos - Emicida
Acho importante registrar que apocalipse é uma palavra forte, e que nem todos os fins vêm com um estrondo ou ruptura violenta. Tenho fé na nossa capacidade de se adaptar - só que precisamos começar o processo já.
Meu apego à palavra específica deve ser porque Apocalipse Crônico ia ser o nome do meu livro, mas o título dizia mais sobre mim do que sobre o que eu estava escrevendo. Depois de escrito, o livro se tornou o Museu das Pequenas Falhas de Caráter e vai sair ano que vem pela editora Mondru. Gosta do meu trabalho? Divulga pros amigues - quem sabe eles não vão curtir também!
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Terra Fenster faz ilustrações que acompanho há algum tempo, e estou amando a estética recente do seu trabalho - como a da segunda foto do texto.
Mais uma vez citei Byung-Chul Han, e mais uma vez deixarei registrado o livro Sociedade do Cansaço.
Cito o romance Cidades Afundam em Dias Normais, da Aline Valek. Ela fala com perfeição da normalidade insustentável.
Terminei de ler Biblioteca da Meia-Noite, um romance de 2020 de Matt Haig. Uma jornada deliciosa e altamente recomendada.
Você sabe o que é “liberdade cognitiva”? Explicamos esse direito humano lá no Labirintos Digitais
Se você gostou desse texto, te recomendo uma edição de setembro da Ovelha Azul: Inimigos do Fim
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