Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo (praticamente) quinzenal das vozes da minha cabeça.
O meio
Eu gosto de História. Ela é fascinante porque, depois que o tempo passa, a perspectiva faz milagres. Temos chance de enxergar a figura maior, entender o contexto, detectar padrões. Sem dúvida, é sempre mais difícil analisar quando estamos olhando de perto, ainda no meio de tudo.
Sabemos que estamos no meio quando o cotidiano nada mais é do que um hábito. A sensação de que a vida sempre foi e sempre será assim se instala, deixando um sabor estático na boca… tudo está dentro da normalidade.
E estamos no meio do que, hoje?
É impossível não falar de internet. Imersão digital faz parte da norma - não existe mais a ruptura da desconexão, e a divisão entre online e offline é simbólica. Portanto, a sensação é de continuidade: as redes estão lá nos esperando voltar, sempre. Estamos totalmente acostumados com conversas que ficam pela metade, sendo retomadas ou esquecidas, mas nunca finalizadas. O próximo episódio, meme, série. Seguimos sempre em frente, sem olhar pra trás e sem pensar no fim.
Tudo tem o mínimo de atrito possível - a experiência de usuário, as interfaces, o design, as ideias. Clicamos, salvamos, compramos, consumimos, sem muita noção de quando uma decisão é tomada ou se é preciso uma pausa maior para refletir. A vida tem sido contínua, e não cíclica - em vez de começos, meios e finais, estamos apenas em velocidade cruzeiro, sem variação.
A indústria de entretenimento ilustra muito bem essa continuidade compulsiva. É normal a quantidade gigantescas de franquias eternas, refilmagens, remakes, reboots, reimaginações, recontagens? Dos dez filmes que mais lucraram em 2023, nove são franquias, reboots, adaptação de livro (Oppenheimer) ou alguma propriedade intelectual passada pras telas (Super Mario, Barbie). Enquanto isso, em 1993, só dois dos filmes mais lucrativos eram adaptações (Dossiê Pelicano e Lista de Schindler), e nenhum reboot ou franquia.
Sem entrar no mérito da qualidade desses filmes - já que eu amei Barbie e Aranhaverso -, parece sintomático. Se é bom, bem aceito, porque não fazer render? Conseguimos fazer durar mais? Se for ruim, a gente só finge que não aconteceu, e tenta de novo depois. Virou normal a nostalgia embalada e revendida a rodo. Tudo exala a vaga aura de familiaridade do que já foi feito, e nos acostumamos com isso. Ninguém tem tempo (e dinheiro) pra se arricar com histórias novas.
Essa continuidade está nas redes, nas instituições, nas histórias, e também em nós mesmos. Nem a imagem no espelho pode mudar - a expectativa, mais do que nunca, é a de juventude eterna. O Brasil é o segundo país que mais faz cirurgia plástica, e o uso de botox é uma norma cada vez mais aceita. Não permitimos que nosso corpo marque a passagem do tempo, e nos afastamos cada vez mais da ideia de ciclos, de começo, do fim.
Quando nos tornamos inimigos do fim, e do começo?
O início
Mesmo o contínuo tem um início. Às vezes, esse começo é gradual, tímido. Fica difícil apontar quando, como, onde começou. Só notamos quando já está em curso, quando já é normal, quando já estamos no meio da história.
Em 24/7 - Capitalismo Tardio e os Fins do Sono, Jonathan Crary descreve como o mundo ocidental está seguindo uma lógica cada vez mais mercantilizada e ininterrupta, com o vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. “(…) muitas instituições no mundo desenvolvido funcionam há décadas em regime 24/7. Mas só recentemente (…) a configuração da identidade pessoal e social foi reorganizada para ficar conforme à operação ininterrupta de mercados, às redes de informação e outros sistemas.” (p.18 edição da Ed. Ubu).
É um estado permanente de transição, em que nunca diminuímos a intensidade, paramos ou recomeçamos. A última fronteira é o sono - ainda precisamos dormir e acordar todos os dias -, mas todo o resto estaria envolto nessa lógica contínua. Crary fala de “disponibilidade absoluta” e “necessidades ininterruptas”, e isso mata a lógica cíclica: inimigos do fim, e também do começo.
O início dessa vida contínua que vivemos é uma combinação das lógicas de eficiência e do avanço tecnológico. A internet tem um papel chave, eliminando a distância e o tempo de espera, nos deixando continuamente expostos e imersos no mundo virtual. Nossa única pausa é, realmente, o sono.
(E às vezes nem dormir bem a gente consegue.)
O fim
Eu comecei a newsletter honrando o título, sem a noção de como terminar. Comecei pelo meio, que é familiar, estudei para descrever o início, e agora me deparo com o final. Eu não sei qual é o final.
Tudo que leio sobre a nossa continuidade compulsiva fica irônico quando penso em quem somos. Pessoas são feitas de carne e a única certeza que temos é que vamos morrer - por mais que finjamos que não, imagine, não tem porquê pensar nisso. A medicina pode prometer que vai curar o envelhecimento e a morte, mas por enquanto isso não passa de uma ficção esperançosa. O fim é certo, é dado.
Essa continuidade anti-cíclica vai acabar, como todos os ciclos. Ela pode ruir junto com a humanidade em um desastre climático, ou ela pode simplesmente se desfazer como tantas outras instituições que se dissolveram na História (mesmo quando pareciam indissolúveis).
A real é que nós, nossa sociedade, nossas crenças e estilo de vida não são eternos - ainda bem. Precisamos de finais para poder começar de novo.
Psiu
Você gosta de refletir sobre internet? Dá uma seguida no novo projeto, @LabirintosDigitais! Me juntei com a
do e com a Talita Iorio para falar sobre a vida cronicamente online que vivemos hoje. Começaremos no Instagram, mas quem sabe pra onde o labirinto vai levar?Outros Avisinhos
A última edição trouxe bastante gente - sejam bem vindes, e obrigada por fazer o texto circular <3 Aqui funcionamos com edições quinzenais que vão entre o ensaio e a crônica, sobre coisas que casualmente noto por aí, ou que ocupam minha cabeça obsessivamente (sem meio termo).
Passa o café ou faz um chá, puxa uma cadeira, e fica à vontade - a casa é nossa.
Ovelha recomenda
Saiu essa semana meu último texto na Delirium Nerd, falando sobre raiva e mulheres - Female Rage: o expoente artístico da fúria feminina. Cito o romance da Bruna Maia - Com Todo o Meu Rancor (e ela postou dizendo que curtiu meu resumo, então podem ir lá ver na paz)
Estou terminando o outro livro do Jonathan Crary, Terra Arrasada: Além da Era Digital, Rumo ao Mundo Pós Capitalista. Quase certa de que já recomendei aqui, mas aproveitando que citei o homem de novo, reforço: leia Jonathan Crary.
Lendo um livro de contos adoráveis do Raphael Bob-Waksberg, o Someone Who Will Love You in All Your Damaged Glory. Não achei em português, mas vou monitorar pra quando aparecer tradução. Ele é o criador de Bojack Horseman, uma das minhas séries favoritas da vida.
A ilustradora Laurène Boglio, dos gifs do texto, tem um olhar e estética que eu amo - sigam lá!
Alguns textos de news que conversaram comigo essa semana:
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Meus textos na Delirium Nerd
Eu amo te ler
Oh, que alegria essa menção. Fico honrado!
Curiosidade: apesar de ter dedicado minha vida à diversos tipos de criação artística, minha educação formal (nunca exercida) é de professor de História.