Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo (praticamente) quinzenal das vozes da minha cabeça.
O celular vibrou. É um amigo mandando meme? Seus pais querendo saber de você? Uma mensagem do trabalho? Uma newsletter? Uma notificação do iFood? Sua contagem de passos diária? Pode ser qualquer coisa - afinal, sua vida inteira está lá, comprimida no espaço de 6 polegadas de um smartphone.
Aliás, não só a sua vida. O mundo inteiro está lá: abro o Instagram e vejo em sequência a foto de uma prima com o marido, outra de uma criança chorando em Gaza, e uma terceira com dois gatos num sofá e uma legenda com “é tipo a gente!”. É surreal o quanto que cabe num aparelho que é pouco mais do que a palma da minha mão.
Gosto de como Byung-Chul Han, filósofo contemporâneo, coloca a questão: o modelo atual da internet, com redes sociais e plataformização, eliminou tanto o espaço quanto o tempo. A sensação do usuário é de que tudo acontece aqui e agora. É, inclusive, esse sentimento de excesso e urgência que torna as pessoas tão reativas quando estão online: tudo parece ser muito mais imediato e importante do que de fato deveria ser.
Talvez seja um pouco demais termos o mundo inteiro na palma da mão.
Na escrita acadêmica, chamam esse processo em que tudo está junto e misturado de “colapso de contextos”. Faz sentido: se tudo é aqui e agora, não existem esferas separadas, e nem uma resposta emocional distinta para cada coisa. Não é só sobre a confusão mental que é pegar o celular: nossa capacidade de reagir fica afetada, afinal, se eu não tenho um contexto claro, como esperar a melhor resposta emocional? Se eu nunca estou preparada pro que pode aparecer, como esperar um bom discernimento? A gente fala muito de interpretação de texto ter morrido na internet, e eu não acho que é meramente uma questão de alfabetização completa em português. A capacidade de identificar o contexto é essencial para o entendimento, e o contexto anda impossível de identificar.
Você recebe um vídeo de 1 minuto no Insta: era um humor irônico ou uma afirmação preocupante? É um vídeo informativo ou uma propaganda? É uma entrevista? Encenação? Em um mundo em que o Flow Podcast, programa de entrevista que o Monark liderava pobremente mas de maneira “séria”, é exatamente igual ao Vrau Cast, do Porta dos Fundos, apresentado por dois comediantes interpretando personagens, como navegar e reagir de acordo? Se o vídeo dos dois chega da mesma forma - um corte no reels -, como esperar discernimento?
Letícia Cesarino, uma antropóloga que já devo ter citado umas quatro vezes por aqui, fala que a nossa sensação de crise permanente vem também desse processo. Pra mim, faz muito sentido: nessa mistura caótica, a gente não sabe navegar e nem reagir. O mundo inteiro na palma da mão, mas sem contexto claro.
Caos.
É por isso que andamos tão literais, na arte e na comunicação, com uma lingaugem tão estéril e higienizada. Um Tweet ou trecho de uma frase de uma entrevista é repetido à exaustão para colocar a pessoa no pedestal ou cancelar a carreira dela, então é melhor ser o mais claro possível. Dicotomicamente, também são tempos de comunicação velada: o Bolsonaro e o Trump são conhecidos por mensagens que viajam de forma completamente diferente em cada público: os fãs de extrema direita entendem uma ordem criptografada, os jornalistas entendem um atentado à Constituição, a esquerda acusa cortina de fumaça.
O meio também dita a mensagem, e nosso formato atual o é o conteúdo. Ele não favorece o contexto, mas sim a velocidade de consumo e a reação instantânea. Ninguém quer gastar tempo com interpretação de texto e contexto. A gente perde muito: nuance, sutileza, ambiguidade, ironia. A tarefa de se comunicar é difícil em um cenário que exige preto no branco.
Espero que os contextos voltem a se dinstinguir - o mundo inteiro no mesmo lugar ao mesmo tempo é coisa demais pra lidar.
Ovelha recomenda
Apaixonada pela estética das pinturas da Mariana Lio (@lio.mariana), que eu já estava de olho a algum tempo para ilustrar news - e encontrei o tema perfeito.
Citei Byung-Chul Han, creio que os livros que tangem mais esse assunto seriam No Enxame, Sociedade da Transparência e o Infocracia: Digitalização e a crise da democracia
Letícia Cesarino falou sobre isso e muito mais no Mundo do Avesso - Verdade e política na era digital
Terminei o Livro Branco, de Han Kang. Eu já tinha lido os outros livros disponíveis dela em português, mas deixei esse de lado por ser meio autobiográfico. Depois do Nobel, resolvi dar uma chance, e que bom que eu dei: parte pessoal, parte ficção, parte prosa poética, ela fala sobre luto a partir da cor branca. Recomendo!
Lendo O Som do Rugido da Onça, da Micheliny Verunschk. Ainda não terminei, mas curtindo muito tanto os múltiplos pontos de vista da narrativa tanto a temática da colonização e subjetividade indígena no Brasil!
Textos que me pegaram essa semana:
E só pra não esquecer…
Meu livro de contos, Museu das Pequenas Falhas de Caráter, está à venda na editora Mondru!
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Meus textos na Delirium Nerd
Labirintos Digitais, falando sobre internet
terminei essa leitura assim 🤯 pra além de interpretar textos não temos mais espaço mental (ou tempo) pra analisar contextos.
Me atrapalhei nas newsletters e estava com saudades de te ler, Bia! E ia mesmo comentar que além de adorar seus textos, amo as curadorias de imagens!