Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo quinzenal das vozes da minha cabeça.
Água é sempre água, fato inegável, mas o recipiente que usarmos para beber faz toda a diferença.
Podemos concordar que um copo é melhor do que uma conchinha com as mãos, ou que uma garrafa com tampa é mais conveniente do que uma colher para o transporte de líquidos. Podemos imaginar, mesmo sem ter experienciado, que beber água de uma mangueira de bombeiro em máxima potência vai ser uma merda, não importa com quanta sede estejamos.
Apesar da água não mudar de identidade dentro ou fora do copo, nossa forma de beber é dependente de um recipiente. Água é sempre água, mas se estiver escorrendo pelos dedos ou dentro de um copo fará toda a diferença na nossa experiência de consumo
Não estou falando de água e copo pensando em metáforas: é uma análise direta e transferível para todo o resto que vamos abordar. Forma e conteúdo são faces da mesma moeda no consumo, e o meu ponto é que é ingênuo priorizar só a substância sem pensar em seu recipiente. É óbvio que um copo de vinagre não mata a sede, como também deve ser óbvio que jogar a água no chão não vai saciar ninguém.
A relação entre forma e conteúdo me fascina desde sempre, como reflexão mas também como método. Trabalho com pesquisa e sei que a apreensão da informação funciona melhor quando está bem envelopada: as imagens, os gráficos, o fluxo, a cor. Adoro o coletivo Information is Beautiful, que explora formatos de apresentação de dados - números também são de humanas.
Eu escrevo a newsletter pensando em um título, testando na minha cabeça se a melhor forma é texto corrido ou em seções, se devo usar ilustrações específicas. Na ficção, eu às vezes penso em formatos antes da substância - no meu livro de contos, tenho uma história em formato de carta, outra em diário, outra em texto de prosa poética, simplesmente porque eu queria ver para onde essas premissas me levavam. Como que eu vou encher esses copos pré-escolhidos?
Ursula K. Le Guin, escritora de ficção especulativa que nunca vou cansar de recomendar, tem um ensaio famoso chamado The Carrier Bag Theory of Fiction, ou a Teoria das Sacolas na Ficção. A autora questiona a teoria de que lanças e formas de armamento foram as primeiras e mais fundamentais ferramentas humanas, e coloca no centro os vasos e recipientes como os objetos primordiais. Ela questiona a nossa narrativa de violência, que foca na arma como o definitivo da cultura humana.
Pensar em vasos e sacolas como fundamento na nossa cultura faz muito sentido: precisamos estocar, carregar, transportar. Precisamos de veículos, sejam físicos ou virtuais. Um “vaso” é necessário para que tenhamos acesso à substância. A forma é necessária ao conteúdo, e ambos só são separáveis como aparato teórico. A água é água mas o recipiente muda como vamos beber. Ursula vai além: ela também fala de histórias, e considera que romances carregam mundos. Eles são, por si só, recipientes. Um mundo só existe se tiver uma história dando suporte.
Minha obsessão por histórias me tornou obcecada também pela forma. Isso me dá um apreço especial por quem consegue transformar a substância através do recipiente - quem deixa a água mais saborosa pelo copo que escolhe usar. Penso na comédia visual de Edgar Wright, que com jogos de câmera aumentam o poder do roteiro. Penso na reinvenção da animação na saga do Aranhaverso, que considerou a velocidade dos frames de cada personagem para fazer parte da caracterização. Penso em Alan Moore com a HQ Watchmen, que usou uma montagem diferente de quadros para retratar a experiência de tempo não linear de um dos personagens. Penso na própria Ursula, que criou mundos inteiros para envelopar sua visão de futuros possíveis. Penso também na internet, com seus copos pré formatados e colocados em fileira, para que a gente beba tudo em um gole só sem parar para refletir. A substância refém do formato.
Essa é uma reflexão que estou tentando escrever por aqui faz um tempo. Uma das coisas boas do formato reflexão é que ele tende a ser circular - não preciso de um final definido. Termino o texto tomando goles de uma caneca de chá, feliz por ter optado por ela e não uma colher.
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Ovelha recomenda
Edição especial, com indicações que sinto que exploraram lindamente o formato para trabalhar o conteúdo. Me conta indicações suas nos comentários??
Arte da edição:
Lilia Lima, do @liliacadeosbordados, faz bordados que são detalhados e repletos de texturas, formando imagens que dá pra ficar horas olhando. Além das suas obras, ela também vende moldes e o faz parte do programa @fiapocoletivo
Livros
Elvira Vigna, qualquer um, porque ela tem essa forma invertida de contar a história que só ela consegue. Como se estivessemos em palimpsestos de putas é um bom começo pra quem não conhece.
Ambos os romances da
, As águas vivas não sabem de si e Cidades afundam em dias normais: em um, ela tem o ponto de vista de criaturas marinhas incluso na história, no outro, ela mistura presente e passado, intercalando capítulos de um documentário sendo gravado com trechos de um diárioElena Ferrante de modo geral, seja a Tetralogia Napolitana, Dias de Abandono ou A Filha Perdida: a forma que essa mulher escreve fluxo de pensamento é surreal.
Amanhã, Amanhã e Ainda Outro Amanhã tem uma resenha minha disponível. Ele pega sua temática - video game - e transforma em uma brincadeira de forma com capítulos que mimetizam jogo, história contada por recortes de notícia e outras coisitas mais.
É assim que se perde a guerra no tempo, de Amal El-Mohtar e Max Gladstone, pelo formato epistolar delicioso
Atos Humanos, da Han Kang, é uma narrativa de um evento histórico em multiperspectiva de maneira maravilhosamente envolvente.
Pessoas normais, da Sally Rooney, pela forma que ela retrata a passagem de tempo nos capítulos
Iluminações, um livro de contos do Alan Moore que por vezes é meio esquisito de ler mas que as experimentações de forma são sensacionais
Filmes - prato cheio, porque toda a disciplina de fotografia e direção de arte se dedica a pensar na forma como parte da mensagem. Único perigo é pegar um lindo copo sem água, mas tomei esse cuidado na seleção - que foi feita sem coesão, olhando meu caderno de filmes kkkk
But I’m a Cheerleader (Nunca fui Santa) (1999): não achei nenhum trailer legendado. As cores vibrantes casam perfeitamente com o roteiro que debate sobre gênero de uma forma plástica maravilhosa
Zona de Interesse (2023): A criação de uma atmosfera com o uso de som, plano aberto e cores pastel apagadas - uma ilustração assustadora da família que gerenciava Auschwitz
Dias Perfeitos (2023): A repetição e a velocidade lenta do filme são intrínsecas à história que ele quer contar
The Killer (2023): aqui o fator da repetição existe para evidenciar a quebra, achei muito bem feito
Dois minutos para além do infinito (2020): gravado em uma tomada, usando um jogo de telas, para ilustrar viagem no tempo
Memento (2000), em que o formato invertido nos coloca na mesma posição que o protagonista sem memória
Quadrinhos:
Eles estão por aí, da Bianca Pinheiro e Greg Stella: a forma que eles ilustram o tempo e movimento nos quadros é algo que nunca vi, contemplativo e absorvente demais.
Brisa Errada, de Amanda Treze: as cores e formas são uma viagem de ácido em forma de quadrinho
Alison Bechdel, mais especificamente Você é minha mãe? e Fun Home: ela consegue fazer o fluxo de lembrança, análise, teoria e o presente dela de forma incrível
Que Deus te Abandone, de André Diniz e Tainá Rocha: a história é sobre chuva e enchente, e o traço… o traço é chuva e enchente.
Animações
Mononoke (2007): nunca vi algo como a animação dessa série, apesar de meio parada.
A saga do Aranhaverso, tenho um texto todo sobre isso
Your Name (2016): além de lindo, tem uma sequência específica na metade final que envolve uma viagem mágica que é um uso perfeito de animação
Nimona (2023) não li o quadrinho, mas o formato animação casou demais com a história - muito pela natureza metamorfa da personagem. As montagens tiram um proveito gigante disso.
Arcane (2021): série baseada em League of Legends, com segunda temporada prevista logo menos. A animação foge do formatinho pixar e a história é carregada pelo formato que conversa com a origem em video game.
E só pra não esquecer…
Meu livro de contos, Museu das Pequenas Falhas de Caráter, está à venda na editora Mondru!
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Meus textos na Delirium Nerd
Labirintos Digitais, falando sobre internet
Ai, Bia 🩷
Nossa, adorei o bordado que lembra A Grande Onda de Kanagawa..