Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo quinzenal das vozes da minha cabeça.
Algo que ocupa minha cabeça desde a adolescência é a imparcialidade. Entendi nova que viéses são inescapáveis, e fiquei muito tempo obcecada na ideia de uma imparcialidade utópica, de uma justiça inquestionável, mesmo que não fosse aplicável para a realidade. Como seria? Quais as condições pra criar um resultado imparcial?
Imparcial, segundo o Google, é quem se abstém de tomar partido ao julgar ou ao constituir-se em julgamento; que julga sem paixão. Conseguimos ser imparciais quando escolhemos uma série de critérios e circunstâncias para avaliar algo - pense em método científico, em julgamento com júri. Pense em todos esses ambientes que tentamos criar para deixar o subjetivo na porta e aplicar um olhar imparcial, sem a tal da paixão.
É possível argumentar que esses ambientes são imparciais, mas eu jamais diria que são neutros. A partir do momento que temos que escolher premissas, quem ficou na porta foi a neutralidade. A decisão por quais critérios vamos usar para avaliar um objeto tem um viés - podemos ser objetivos dentro desse viés, mas isso não torna o ponto de vista neutro.
Isso não é um problema em si: estamos fazendo o melhor possível. Neutralidade não é humana - no máximo, um termo químico que criamos pra descrever pH e alguns tipos de sabão. Se somos incapazes de ser neutros, a única forma de avançar para a tal da imparcialidade é abraçar isso. Toda e qualquer neutralidade humana, se levada ao pé da letra, é um mito.
No grupo dos Valekers - leitores que apoiam a escritora
- tivemos alguns debates sobre os conceitos de ciência e pseudociência, que me inspiraram pra esse texto. O assunto tem sido quente internet à fora, o tipo de treta que se alimenta no campo de guerra virtual: verdades absolutas, argumentos irrefutáveis, fúrias. A conclusão dentro de nosso grupo, muito mais tranquilo do que a internet em si, tendeu sempre ao inescapável: não se pode jogar o bebê fora junto com a água do banho, mas a ideia da ciência neutra é uma falácia.Minha maior obsessão com neutralidade é, na real, que me parece cômico alguém acreditar nela de verdade. Toda reação que eu tenho ao mundo tem a ver tanto comigo quanto com o mundo - meus viéses são parte intrínseca dessa relação. Objetividade pura é uma lenda urbana que fica perigosa quando acreditamos nela.
(…) a partir do momento que eu traduzo uma onda sonora em barulho ou noto uma nuvem no céu, o mundo deixa de ser estrangeiro, e passa a existir segundo a minha visão.
Eu nunca vou ver o mundo desvinculado da minha visão, além das ferramentas de percepção que eu tenho. Doido, né?
- Uma ficção própria, uma edição passada da Ovelha Azul
A ideia da ciência neutra, por exemplo - quais as premissas para um campo ou pesquisa? Qual o olhar? Quem está guiando essa narrativa? De forma alguma a ideia é o negacionismo, ou uma relativização violenta e sem base da ciência. Meu ponto, pura e simplesmente, é honestidade: se os viéses e perspectivas são colocados na mesa, é muito mais fácil buscar construir para longe deles. Fingir neutralidade é perigoso porque, sem aceitar nossas próprias premissas, vamos ficar andando em círculos para reforçá-las. Quando temos em vista de onde estamos começando e no que estamos de fatos nos baseando, conseguimos avançar para mais longe.
Colocar em cheque essa ideia de neutralidade é essencial principalmente porque grupos hegemônicos têm o hábito de se enxergar como universais e esquecerem que observam o mundo de um ângulo específico. Eu não posso discutir feminismo e gênero de forma honesta, por exemplo, enquanto não admitir que, além de mulher, eu também sou branca, dentre tantas outras coisas. Eu não posso fingir que toda a minha bagagem como ser humano não impacta meu ponto de vista quando escrevo ensaios ou faço pesquisas. As minhas perguntas não saíram da neutralidade, mas sim do campo fértil e viesado que é a minha cabeça.
Não somos neutros - esse é só o sabão mesmo.
Ovelha recomenda
O Christoph Niemann, ou @abstractsunday, é um ilustrador que eu adoro, brincando com ângulos e simplicidade. Eu o descobri em um episódio do documentário Abstract, no Netflix.
Pra quem se interessar pelo tema de percepção, já explorei essa ideia em outras edições - que tal revisitar outros textos da Ovelha Azul?
Segundo o Kindle, em poucos dias eu já devorei 3/4 de Amanhã, Amanhã e Ainda Outro Amanhã, um romance da Gabrielle Zevin. O livro é sobre um casal de amigos que começam a fazer video games, e o ritmo, personagens e trama estão me absorvendo obsessivamente. Se eu descobrir que não gostei, comento na próxima edição, mas por enquanto eu recomendo kkk
Os Cinco Diabos é um filme francês disponível no MUBI e dirigido pela Léa Mysius. Um thriller esquisito que te absorve (tenho estado muito absorvível nesses últimos tempos), com uma proposta diferente e interessante.
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