Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo (praticamente) quinzenal das vozes da minha cabeça.
Quando eu era criança, eu frequentemente pensava sobre super poderes. X-Men estava no seu auge, e boa parte das histórias que eu consumi tinham um elemento de dons e poderes extraordinários. Nunca cheguei em um consenso sobre a habilidade que eu queria ter, mas eu gostava de imaginar diferentes versões possíveis, suas utilidades, quais as regras que compunham aquele superpoder.
Um pouco mais velha, li Ensaio sobre a Cegueira (foi mais ou menos no mesmo período que saiu o filme, 2008), e o conceito de epidemias inexplicáveis e as questões existenciais que viriam com elas me deixou igualmente fascinada. Passei um tempo fantasiando conceitos fantásticos de epidemias esquisitas, da mesma forma que pensava sobre superpoderes. Mesmo antes de começar a escrever de fato e entender que “E se?” é um dos fundamentos da ficção, já era uma pergunta que ocupava a minha cabeça constantemente.
Foi nessa época que fantasiei uma história de uma criança desejando para uma estrela que sua mãe a comprendesse de fato, ao invés de ficar ditando regras opressoras. Esse desejo seria o estopim para uma condição misteriosa que tomaria o mundo: uma empatia irrefreada. Quando as pessoas se tocavam, elas teriam compreensão total uma da outra, muito além do que a linguagem é capaz de traduzir. O evento seria perigoso para a humanidade - como o Eu resistiria a investidas tão fortes do Outro? Será que seríamos capaz de manter a existência do ego se de fato enxergássemos os outros com as mesmas lentes que a nós mesmos?
Essa semente de história reflete uma grande obsessão minha, que é comunicação e expressão. A ideia de que a linguagem é o que nos une e nos faz humanos sempre foi central pra mim, e quando comecei a entender que nossas perspectivas e experiências afetam nossos entendimentos de linguagem, nunca mais consegui parar de pensar nisso. Duas pessoas, na mesma conversa ou com o mesmo texto, duas conclusões completamente diferentes. Isso é fruto de muita coisa: nossas perspectivas de mundo e realidade, pontos de vista, nossas ficções próprias. É tema recorrente por aqui: em Neutro é o Sabão, discuto como a neutralidade é um conceito que não se aplica a pessoas; em Uma ficção própria, falo sobre como só percebemos a vida por nossas vias limitadas; em Uma árvore caindo faz barulho?? discuto sobre como a percepção do outro nos afeta.
Obsessão é uma palavra que eu gasto um pouco demais, mas é honesta nesse caso. Não é só sobre o conceito de compreensão: eu sou obcecada por compreender e me fazer compreender. Sinto que a língua é tudo que temos, mas ela é uma tradução imperfeita do que se passa na nossa cabeça e queremos colocar no mundo. Isso me angustia e fascina ao mesmo tempo.
Voltando para 2008, além do lançamento de Ensaio sobre a Cegueira e minha subsequente leitura do livro, o mundo chacoalhava com o encerramento de uma era. Amanhecer, da Stephanie Meyer, era o quarto e último livro da saga Crepúsculo. Já se passaram quinze anos, então não preciso avisar do spoiler: é nesse que a Bella, humana mortal que namora Edward, um vampiro de mais de 100 anos, tem uma filha meio vampira e meio humana, Renesmee.
No mundo de Meyer, vampiros podem ter habilidades especiais - Edward consegue ler mentes, por exempo. A filha do casal nasceu com o dom inverso do pai: através do toque, ela consegue transmitir os pensamentos e imagens que se passam em sua mente. Renesmee consegue se comunicar diretamente com outra pessoa, com imagens, sons, sentimentos e palavras, mas sem necessitar da tradução imperfeita da linguagem. Renesmee tem, além do pior nome já imaginado, o super poder que eu gostaria de ter mas nunca imaginei na infância. Ela consegue se fazer entender num nível em que a linguagem simplesmente não é capaz.
Eu invejo essa poder fictício de uma criança vampira fictícia porque frequentemente quero botar no mundo o que se passa pela minha cabeça, mas o trabalho é sempre incompleto. Acho que você não me entendeu, pelo menos não completamente é algo que penso mais do que deveria. Conversas, textos, poemas, opiniões, tudo é uma tentativa pífia. Lógico que é uma via de duas mãos - eu devo achar que entendi muitas coisas e pessoas que não entendi -, e isso me dá uma estranha solidão. Refém da língua, eu tenho um limite: será que, sem outros super poderes, eu vou conseguir me sentir entendida?
Não faço ideia se essa é uma angústia de mais pessoas. Sei que conexão é uma das principais buscas humanas, mas eu imagino que cada um pense nisso de uma forma, se angustia do seu jeito, ou talvez nem se preocupe com isso. Creio que escrita é a forma que desenvolvi de tentar propor pro mundo as questões e fantasias da minha cabeça, mesmo que a tradução não seja perfeita. Nunca vai ser, na verdade, mas não tenho alternativas.
Não sei se você me entendeu, mas seguirei tentando. A língua, mesmo pior capacitada que o poder de Renesmee, é tudo que tenho. É o meu único superpoder.
Sigo escrevendo.
Aos quinze anos, eu não consegui escrever essa história sobre uma epidemia de empatia, mas com quase o dobro da idade foi quando escrevi Contágio, uma versão dessa ideia. Esse é um dos contos do meu livro que vai sair no início do ano que vem!
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lançou o Literoutubro desse ano: uma palavra para inspirar um texto por dia. Estou seguindo o desafio por aqui, e depois compartilho minhas criações favoritas!Alguns textos que conversaram comigo essa semana:
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