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Bruce Willis, Debord, o termo "vicariously" e outras coisas mais
Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo (praticamente) quinzenal das vozes da minha cabeça.
Em 2009, eu assisti um filme fraquinho chamado Os Substitutos. A sinopse é bem objetiva: em uma sociedade em que as pessoas vivem através de substitutos - robôs humanóides que elas controlam de dentro de casa para se protegerem das violências e intempéries do mundo -, um agente do FBI interpretado pelo Bruce Willis está investigando um assassinato de um estudante que teve seu substituto destruído.
O conceito toca algumas camadas: tanto a ideia de se isolar e proteger, vivendo apenas a parte ‘boa’ da vida, controlando remotamente algo que funciona quase que como uma armadura, quanto a questão dos substitutos sendo notavelmente mais jovens e bonitos do que as pessoas que o controlam. O protagonista é um cara angustiado com esse contexto, e uma das cenas iniciais é justamente ele tentando convencer a esposa a tirar férias e fazer uma viagem com o próprio corpo. Como acontece com frequência em sci-fi, não precisa ser bem feito para conseguir trazer uma parada maneira para pensar.
A gente está distante da literalidade de colocar robôs para experienciar o mundo físico por nós, mas essa ideia de vida indireta é bem forte no mundo atual. Influenciadores que fazem uma viagem caríssima para produzir conteúdo sobre ela, e não para vivê-la de fato. Nós, meros mortais, que consumimos esse conteúdo e nos sentimos um pouco parte daquela experiência, mesmo nunca tendo estado lá. Essa ideia de viver “vicariously” - uma expressão em inglês que significa experienciar algo indiretamente através do outro pessoa.
A doidera pra mim é que esse fenômeno de experiência indireta não é só por meio do amiguinho ou do criador de conteúdo. Acabamos vivendo indiretamente pela própria imagem que criamos nas redes: o eu no Instagram viaja, posta foto bonita, e está sempre no melhor ângulo, mas nunca chorou, fez cocô ou fracassou. Esse eu online editado nos dá um gostinho da nossa vida ideal e perfeita, através imagem que a gente cria de nós mesmos. Eu falei na edição passada do Lipovestky, do online que nos faz construir um autorretrato em tempo real que não vem da busca de si, mas sim de uma exposição imediata. Esse eu é aspiracional, achatado, e sem arestas e fricções no mundo, e ele que vive a parte boa da vida por nós.
A experiência indireta não é necessariamente negativa, vale dizer. Nem criar uma persona online é, no caso. Os dois podem expandir o mundo indiviual, permitir explorações de forma mais controlada. Possibilitam trocas que podem ser muito maneiras, que lembram aquela época utópica da internet. Diria que o grande X da questão é emaranhar a identidade pessoal com a imagem online, essa criação de vibe que confunde o real e o imaginário. Tipo a galera que fez cirurgia para ficar com o rosto igual ao de filtros, num fenômeno que chamaram de dismorfia de snapchat.
Se você estudou algo remotamente conectado com humanas, provavelmente já falaram muito d’A Sociedade do Espetáculo pra você, então eu peço desculpas por trazer esse livro pra sua vida de novo. O texto do Guy Debord saiu no fim da década de 60 e é citado a rodo até hoje, porque casa como uma luva com a relação atual da sociedade com imagens. Ele explica que, em determinado momento da expansão econômica e capitalista, o ser se degrada para o ter, se tornando mais importante possuir e adquirir objetos e mercadorias do que “ser” alguém; mais tarde, temos um deslizamento generalizado do ter para o parecer - mesmo possuir objetos tem uma finalidade imediata e última, fugaz, que contribui para as aparências. Mais importante do que ter, é parecer ter.
Veja bem, o espetáculo aqui não é sobre um conjunto de imagens de mentira que nos enganam, mas a ideia de uma relação social entre pessoas, mediada por imagens. Pensando no nosso eu online curado cuidadosamente, nessa ideia de experienciar as coisas de forma indireta por imagens, nas redes sociais fazendo mediação, é justo falar que o Debord já descrevia uma série de questões que a gente vive hoje. Disse ele: “o consumidor real tornou-se consumidor de ilusões”, e “quanto mais ele contempla, menos ele é". No rosto não, Debord, que estraga o enterro!
É de se pensar o quanto da nossa experiência é indireta ou mesmo fictícia, e em serviço de imagens. Em um mundo de inteligência artificial generativa, você pode criar imagens medonhas sem passar pelo processo artístico, pode criar textos insossos sem escrever. Você pode postar um rosto igual a todos os outros que nunca teve, pode cantar com um alcance vocal que nunca conseguiu ter. Você pode tudo, ou parecer tudo, mas você não é, efetivamente, nada.
Abro o Instagram, e nas fotos vejo alguém com o mesmo rosto que o meu, mas sempre do melhor ângulo. Ela parece ter uma vida boa. Espero que seja feliz.
Ovelha recomenda
Livros que usei de base: A estetização do mundo: Viver na era do capitalismo artista, do Lipovetsky e do Serroy, e A Sociedade do Espetáculo, do Guy Debord
Olha, eu não diria que recomendo Os Substitutos, mas aparentemente tem no Disney+, a quem interessar possa.
Curti Conclave, que tá concorrendo pruns Oscars. Comecei a fazer uma análise em retrospecto e eu gosto de dramas que envolvem padres e freiras, VAI ENTENDER.
Textos que me pegaram esses tempos:
o que fazer quando um bilionário dono de uma big tech faz um anúncio fascista, da
, e as outras duas edições que ela cita nesse mesmo texto, a internet não mudou e o que dizem quando dizem que a internet morreuSobre ser latina e viver o realismo mágico, da
Spruce, da
E só pra não esquecer…
Meu livro de contos, Museu das Pequenas Falhas de Caráter, está à venda na editora Mondru!
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Meus textos na Delirium Nerd
Labirintos Digitais, falando sobre internet
Olha, fiquei com esse email mais de um mês parado porque você foi muito eficaz no título e senti que eu tinha que ler de verdade, não só passar os olhos... E hoje, consegui ler e vim até aqui só pra comentar rs
Primeiramente obrigada, pela escrita, pela rotina, pela reflexão!
E também me sinto leve, mas não devia? rs Porque justamente hoje pensei em como as coisas na internet se perderam um pouco, via tantas pessoas dizendo "criei esse canal/perfil" para procurar gente que pense como eu, mas agora, parece que tá todo mundo só falando igual mesmo. E falando, só o que acham que as pessoas querem ouvir.
Brutal demais. Reflexões contemporâneas nos coloca na nóia hehe tu mencionar o espetáculo é incrível e também é massa ver como a hiperrealidade faz todo sentido, ainda mais nas redes sociais, onde a galera já se perdeu tanto e se perde ainda na criação de um imaginário e ideal, que se forçam a vivenciar aqui até se tornar um tipo de realidade, que ainda quem vê, toma pra si como a realidade daquela pessoa e idealiza ela tipo, camada após camada e no fim, não se sabe mais o que é verdade ou só simulação. Sinto isso forte com as tools generativas, lembro que 10 anos atrás essa hiperrealidade estava se formando na relação humano x informação, agora não há mais barreiras na parada e não dá pra saber o quão plástico é o que a gente interage e consome na internet-que vale pra tv, smartphone etc... É rs