Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo (praticamente) quinzenal das vozes da minha cabeça.
Primeiramente, feliz ano novo - não sou nada se não educada. Segundamente, vamos com o texto - não sou nada se não prática.
Ano passado, aquele que estava rolando menos de um mês atrás, encerrei o primeiro ano da newsletter com seu vigésimo texto - A natureza repetitiva dos ciclos. Falo de como gosto da sensação de ciclos que acabam, do alívio que o final trás, e da repetição natural que o tempo tem. Não tem muita fuga: os textos que circulam a internet entre dezembro e janeiro invariavelmente falam sobre tempos, ciclos, passados e futuros.
Falar de ciclos e tempo e todas as suas variações - hábitos, memórias, sonhos - não me incomoda. Pelo contrário, quando se escreve com frequência basta reler seus escritos para descobrir as suas obsessões, e o tempo é uma das minhas. Me obceco pelo tempo porque a sua passagem constante vai me levar a morrer um dia, e isso é o suficiente pra eu dedicar parte da minha cabeça pra pensar nisso. Imagino que muita gente tem uma versão desse pensamento guardada dentro de si.
Coletivamente, o tempo também vira um tema central. A sociedade contemporânea tem uma relação fragmentada com ele, que tem muito a ver com um ditado do século XVIII que virou imperativo na nossa vida: tempo é dinheiro. Não toleramos inconveniências e gasto de tempo, querendo tudo sem atrito, e não lidamos bem com finais. O tempo internético e capitalista é ininterrupto, sempre em frente, invariável - ciclos envolvem desacelerações, que nada mais são do que custos, então melhor não parar nunca. Entre otimizações e progressos, tentamos reduzir o tempo a uma commodity, um item produzido em massa.
Se o tempo é só mais um produto, a gente não precisa se preocupar. Ele é, necessariamente, menor do que nós, e vai ser regulado pelo mercado.
Essa é uma forma boa de fingir que o tempo não nos assusta. É bem diferente da relação de caráter divino que vemos em outras culturas e épocas, como na mitologia greco-romana, por exemplo. Cronos, deus grego do tempo, fez parte do mito criador: ele é filho do céu e da terra, Urano e Gaia. A pedido de sua mãe, que em algumas versões do mito está unida à força e ininterruptamente ao seu pai, Cronos castra Urano com uma foice e joga o testículo no mar.
Ele passa a governar o mundo, mas depois de escutar a profecia de um oráculo anunciando que um de seus filhos roubaria seu trono, Cronos passou a engoli-los. Reia, sua esposa e irmã, consegue enganá-lo quando entrega uma pedra embalada em tecidos e esconde o seu sexto filho para que pudesse crescer. Esse foi Zeus, que mais tarde deporia o pai e libertaria seus irmãos engolidos, se tornando senhor do Olimpo.
“Saturno devorando seu filho” é uma pintura famosa de Goya que, ao invés de retratar o deus do tempo engolindo seus filhos como no mito - o que possibilitou vomitá-los devidamente inteiros mais tarde -, pinta Cronos/Saturno devorando um corpo desmembrado com violência.
(vale pontuar que essa pintura faz parte de uma série que só foi nomeada após a morte do pintor - às vezes nem era Saturno/Cronos. Ou era. Vai saber)
É um mural assustador, que pode ilustrar muito bem esse respeito aterrorizado que se tinha pelo tempo. Ele passa, inexorável, e no caminho devora e destrói. O tempo é violento, e muito maior do que nós.
A mitologia de um povo é um reflexo direto de seus anseios, angústias, crenças e medos, e especialmente a greco-romana tem uma influência grande na cultura ocidental. Poderíamos ficar horas discutindo os simbolismos do tempo castrador dos céus, da violência que usam pra retratá-lo devorando seus filhos, mas não vou nem me aprofundar nisso hoje. O que podemos já concordar agora é que Cronos, claramente, jamais seria uma commodity.
Mesmo quando o panteão olímpico expandiu seu conceito de tempo, o caráter incontrolável ainda estava ali. Kairós é um deus e filho mais jovem de Zeus com Tique, deusa da prosperidade e sorte (seja ela boa ou ruim). Ele é comumente retratado com uma balança, e representa outro tipo de tempo: o oportuno. Se o tempo inexorável é o avô, seu neto é o tempo favorável.
Vê-se na língua: a palavra grega cronos se refere ao tempo sequencial, à dimensão quantitativa do tempo. Kairós também significa tempo, mas numa dimensão qualitativa: o momento de oportunidade, uma abertura. Um olhar menos aterrorizado sobre a temporalidade, mas que ainda coloca a humanidade em um papel vulnerável. É preciso da vontade humana, mas ela não é nada sem momento oportuno.
É uma inversão grande, pensar que de criaturas a mercê das divindades do tempo passamos a senhores proprietários dele. Se o tempo é um bem, eu sou dona dele - e não o contrário. Será que é assim mesmo?
As duas faces dessa relação com temporalidade são muito humanas. Elevá-la ao posto de divindade ou reduzi-la ao papel de produto vêm, na minha opinião, do mesmo lugar. Nossa tentativa eterna de lidar com a noção da morte - o medo de morrer, o desejo de ter mais tempo.
Tentar extinguir a temporalidade, tornando a vida sem atrito e matando a noção de ciclo, não nos salva do inevitável. Podemos tentar parar no tempo, fugindo de finais e nos congelando com procedimentos estéticos, mas não tem o que fazer. A natureza do tempo é transformadora, e não temos opção além de nos deixar transformar.
Ovelha Recomenda
Gostou da news de hoje? Querem nos livrar do atrito e Inimigos do fim são dois textos do ano passado que incorporam muito desse olhar
Assisti O Assassino (2023), do David Fincher, na Netflix: o filme é quase um grande monólogo, já que o personagem do Michael Fassbender mal interage com outras pessoas, mas tem uma relação interessante com o tempo. Pela repetição ligeiramente diferente toda vez, notamos o tempo passando. Gostei.
Ainda não terminei, mas estou curtindo muito Carol e o Fim do Mundo (2023), também na Netflix. Uma animação sobre um apocalipse anunciado dali a sete meses - quer algo melhor pra explorar nossa relação com o fim?
Finalmente acabei de ler O mito da beleza (1990), da Naomi Wolf, e apesar da autora ter se tornado antivacina e perdido a credibilidade, o saldo do livro ainda se segura bem. A relação com o envelhecimento é um dos temas - esse desejo de parar no tempo.
Por fim, li também Klara e o Sol (2021), do Kazuo Ishiguro. Uma ficção narrada sob o ponto de vista de Klara, uma amiga artificial que observa o mundo com afinco. Também desenvolve o tema sobre a preservação apesar do tempo, mas não vou detalhar para não ter spoilers. No fim, tudo acaba abordando o tempo.
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