Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo (praticamente) quinzenal das vozes da minha cabeça.
Em 2019, o filme Coringa do Todd Philips foi lançado, estrelando um Joaquin Phoenix extremamente magro e esquisito como palhaço do crime. A qualidade do filme é questionável, e ele é totalmente carregado pela performance do nosso amigo Phoenix - que inclusive ganhou um Oscar.
A proposta da trama é um mistério pra mim (é sobre opressão? sobre deficiência? sobre classe? sobre incel? é sobre o batman?), e esse ano teremos a sequência, um musical que inclui a Lady Gaga. Por mais que eu pessoalmente não tenha sido conquistada pelo Joaquin Phoenix rindo ininterruptamente, esse filme é parte inegável da nossa história cultural recente. Afinal, Coringa é responsável por um dos termos mais populares na boca do brasileiro online: coringar.
Coringar é perder a cabeça com a pressão e insalubridade bizarra do cotidiano. Se o ano era 2019, estávamos vivendo o Brasil de Bolsonaro e Estados Unidos de Trump. O termo fake news já havia se popularizado, o TikTok estava em ascensão, e o mundo espiralava de um jeito estranho. “Coringar” surge como uma luva: diante de uma realidade ingrata e incerta, é impossível manter a sanidade sem surtar.
Mais tarde surgiu a evolução desse meme, a “mente do palhaço”. Afinal, dentre tantos coringados, coringadas e coringades, é um enigma o que se passa na cabeça enlouquecida de cada um. Malucos são um mistério; só Deus conhece de fato a mente do palhaço, e mais ninguém.
Esses memes que zombam de nossa saúde mental em frangalhos seguem populares. Em 2023, se popularizou a frase “delulu is the solulu” internet a fora - ela significa “delusion is the solution”, ou “delírio é a solução”. Está falido? Corno? Puto? Quando a realidade dói, viver o delírio é muito mais interessante do que sentir doer. Delulu is the solulu é o zeitgeist, o espírito dos tempos, um meme que grita por ajuda enquanto ri em delírio. Um coringa, porém menos violento.
Eu já falei que estamos meio doidos, com dificuldade de discernir o real do inventado - cheguei a me questionar se eu era feita de bolo. Quando pensamos em internet, um meio de comunicação tão presente na nossa vida, um grande intermediador com a realidade, acho sintomático os memes que surgem. Se tem tanta gente fazendo piada sobre a realidade ser tão insalubre que as opções são enlouquecer que nem o coringa ou delirar que a vida não é tão ruim assim, talvez tenha algo de estranho por aí.
É fato que a vida pós pandêmica segue com ingredientes de incerteza e medo, vide a crise climática e os desastres recentes. Qualquer pessoa em sã consciência está na borda da loucura, exausta, pronta pra coringar. Delulu pode muito bem ser a solulu de sobrevivência imediata. Contudo, a pergunta que não quer calar: se a realidade está enlouquecedora, não conseguimos mexer nela? Temos, em nossas mãos impotentes, apenas o delírio?
Se você, alguém provavelmente coringado, tem dificuldade de imaginar saída, não se sinta sozinho. O teórico Mark Fisher explica bem essa sensação quando usa o conceito “realismo capitalista” para falar dessa nossa impotência em reimaginar a realidade. Segundo ele, um dos maiores sucessos do capitalismo foi a colonização dos nossos imaginários. É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do sistema, e isso afeta a nossa relação com o futuro e nossa capacidade de sonhar além. É mais fácil delirar do que pensar em outras formas de viver.
Observando os gritos de exaustão da internet, parece mesmo que sofremos dessa impotência de imaginar um futuro. Afinal, toda nossa energia está voltada para não se perder na corrente. Enlouquecendo solitários, porque a mente do palhaço está apenas entre ele e Deus.
Infelizmente, ainda não encontrei soluções para o problema nos memes, só montei esse diagnóstico mesmo. Para não deixar apenas nosso atestado de palhaços como conclusão do texto, trouxe um trecho do discurso da escritora de ficção especulativa Ursula K. Le Guin, feito quando ela ganhou o National Book Award em 2014.
Acredito que tempos difíceis estão por vir, quando desejaremos ouvir a voz de escritores que consigam ver alternativas ao que vivemos hoje e possam enxergar além desta nossa sociedade tomada pelo medo e por sua tecnologia obsessiva, [possam enxergar] outras maneiras de existir, e que possam até imaginar possibilidades reais de esperança. (…) Vivemos no capitalismo. O seu poder parece ser inevitável. Assim era o poder divino dos reis. Os seres humanos podem resistir a qualquer poder humano e mudá-lo.
Tradução por Ana Cristina Rodrigues, auxílio de Petê Rissati, revisão de Cláudia Fusco e Kátia Regina Souza - discurso na íntegra aqui
Ouso dizer que o meme está equivocado: não é só Deus que sabe o que se passa na mente do palhaço, nós sabemos também. Se todos coringamos, ninguém está sendo palhaço sozinho.
O desafio real é imaginarmos futuros para esse nosso circo.
Ovelha recomenda
Precisamos seguir fortes com a mobilização ao redor do desastre do Rio Grande do Sul. Seguem correntes solidárias para fortalecer:
MTST, qu está focado na doação de alimentos - pix 09352141000148
Rede de cozinhas solidárias do MTST no RS - link
CUFA (Central Única das Favelas) está recebendo doações em SP e Santos. Também dinheiro pelo pix doacoes@cufa.org.br
SOS Enchentes, pelo Instituto Vakinha, Pretinho Básico e Badin, o Colono - pix enchentes@vakinha.com.br
Conselho LGBT de Floripa está recebendo doações presenciais ou via pix conselholgbtfloripa@gmail.com
A Ajuda Trans RS busca pessoas trans para voluntariado e oferecimento de ajuda psicológica gratuita, por esse formulário. Também aceitam doação via pix 23420475000132
Petz de diversas cidades estão recebendo doações de ração, água, roupas, alimentos, produtos de higiene e limpeza, lista aqui
Agências de correios em SP, PR, SC, BA, MG, PE, DF e RJ estão recebendo doações de alimentos de cesta básica, produtos de higiene pessoal, itens de cama, mesa e banho, ração pra pets
Doação direta para a Livraria Taverna - pix livrariataverna@gmail.com
Usei o livro Realismo Capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo (2009), do Mark Fisher como ref, e recomendo a leitura.
Leia Ursula K LeGuin, sempre. Li Os Despossuídos (1974), e eu não consigo por em palavras a fineza com a qual ela analisa o mundo, econômica e socialmente, e cria um experimento mental de possibilidades. A história é sobre um mundo como a Terra, mas que expurgou uma revolução anarquista para a Lua. Cem anos depois desse acontecimento, temos um homem dessa sociedade conhecendo a Terra - o nosso mundo e costumes, sob o olhar de um estrangeiro.
Estou lendo Os perigos de fumar na cama (2023), da Mariana Enríquez. Contos de terror que vão do perturbador ao mais macabro - estou lendo devagar porque sou bem bunda mole com essas coisas kkkk
Vi Dead Boys Detectives (2024) no Netflix, e é bobo mas um bom passatempo kkk do universo do Sandman do Neil Gaiman.
Textos que curti ler esses tempos:
Não prometo nada #30: fé nas malucas, por
#249 Queria ser grande, mas desisti, por
Steve Albini vai fazer muita falta, do
E pessoal de São Paulo…
Dia 25/05, sábado às 15h30, teremos o lançamento do meu livro de contos, Museu de Pequenas Falhas de Caráter! Será na Livraria Sentimento do Mundo, em Santa Cecília. Mais perto mandarei aquele lembrete esperto <3
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Meus textos na Delirium Nerd
Labirintos Digitais, falando sobre internet
Ótimas reflexões e referências, Bia! Amei!
Está muito difícil imaginar um futuro alternativo, mas realmente não podemos ceder. Amei a edição, Bia! E desejo sucesso com o lançamento do livro <3