Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo (praticamente) quinzenal das vozes da minha cabeça.
Às vezes a gente esquece que é humano, né? E que a maioria do que vivemos foi nós mesmos que inventamos.
Não me leve a mal, eu acho essas invenções necessárias. Viver em sociedade demanda uma série de pactos e crenças compartilhados. É o que nos mantém coesos e possibilita o funcionamento coletivo: atribuímos valor ao dinheiro, poder às leis, importância aos nossos rituais. São insituições que vão muito além da existência individual, mas que, ao mesmo tempo, existem apenas na nossa cabeça. Tudo é inventado, mas também muito sério.
Esses pactos são, simultaneamente, umas das coisas mais humanas e mais inumanas que existem. Pessoas são o único bicho que usa crenças como cola social, nada mais humano do que isso, mas é engraçado pensar que as instituições que surgem alcançam condição de algo além de nós mesmos. Tão sério, que deixa de ser humano.
Dinheiro é algo além de uma pessoa. O Estado vai muito além de uma pessoa. Religião por definição busca transcender além do indivíduo. Na busca pela coesão social, demandamos dessas crenças e instituições tudo que não conseguimos uns nos outros: consistência, constância, certeza, perenidade. Eu acho fascinante que as instituições que a gente cria pra manter a nossa humanidade girando, que nos distinguem de outros bichos, são um lembrete de tudo que não somos.
Afinal, pessoas morrem, têm inconsistências, pessoas não têm nenhuma certeza além do fim. Para existirmos coletivamente, para resistir à inevitável fragilidade humana, aparentemente precisamos acreditar que algo perdura. Inventamos algo que seja o oposto de nós.
A busca mais humana que existe é por algo além de nós mesmos.
Quando escrevi sobre meu sonho de ser terapeuta de celebridades, falei um pouco sobre pessoas que transcendem o status individual e se tornam fenômenos culturais - uma forma de instituição. Toda a minha brisa em cima disso é o quanto nós, como pessoas, não fomos feitos pra ter todo esse poder ou consistência. Não somos feitos para ser tão sérios assim. Quando alguém ganha esse nível de importância pública, imediatamente é cobrada por uma consistência anormal dentro da personagem que ela assume. Somos performáticos, mas que prisão a consistência dessa performance pode se tornar.
Celebridades são um exemplo extremo, mas essa é uma reflexão possível pra uma série de instituições. Elas nada mais são que um amontoado de pessoas – trabalhando ativamente ou que apenas concordaram com aquilo. Religião, o Estado... uma marca ou empresa, hoje, também tem status de instituição. Todos esses são conglomerados de pessoas falhas, inconsistentes e etc, mas demandamos que essa amálgama de gente entregue algo além. Algo maior do que nossas fragilidades.
“Porque a mídia isso”, “o governo aquilo”, “a igreja decidiu” - frases comuns, mas estranhas: essas não são entidades separadas de nós. Elas nada mais são do que pessoas humanas acumuladas. Instituições têm o caráter de autoridade muito maior que o indivíduo, mas ela só consegue existir através deles. Mesmo na nossa tentativa de criar algo além de nós mesmos, serão sempre as frágeis mãos humanas as responsáveis.
Somos pouco confiáveis, inconsistentes, é um perigo nos levar a sério. Eu sei que precisamos de instituições maiores que nós, que é essencial que elas adquiram seriedade. Porém, é recomendável que se desconfie de qualquer coisa que nasceu da humanidade, porque não fomos feitos para sermos certos ou eternos. É difícil mudar e somos resistentes a rever nossas próprias invenções, mas às vezes convém lembrar que elas vieram da nossa cabeça.
É uma das partes boas, na verdade, porque podemos questionar e refazer. Talvez a chave seja não levar tão sério, tantos nós mesmos quanto as coisas que inventamos. Nessa busca tão humana por algo além de nós mesmos, podemos ainda assim nos reservarmos o direito de duvidar e repensar.
Afinal, apesar de precisarmos delas, nós não somos instituições - ainda bem.
(Esse texto, apesar de ser uma invenção, é do tipo que não deve ser levado muito a sério.)
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