Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo (praticamente) quinzenal das vozes da minha cabeça.
I.
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre dois jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre dois lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc
etc
etc
Desaprender oito horas por dia ensina os princípios.
Manoel de Barros, Livro das Ignorãças (1a parte: Uma didática da invenção)
A dor e a delícia da humanidade é o quanto estamos limitados a nós mesmos.
Apalpamos o mundo a partir dos nossos sentidos, as ferramentas de percepção que tivermos disponíveis: a realidade está na ponta dos dedos, no barulho, na luz e sombras, no cheiro e sabor. O mundo só existe pra mim a medida em que consigo percebê-lo, bem ao estilo da última news - Uma árvore caindo faz barulho??. Porém, a partir do momento que eu traduzo uma onda sonora em barulho ou noto uma nuvem no céu, o mundo deixa de ser estrangeiro, e passa a existir segundo a minha visão.
Eu nunca vou ver o mundo desvinculado da minha visão, além das ferramentas de percepção que eu tenho. Doido, né?
Nesse processo de entendimento do mundo, o cérebro humano tem uma série de charmes. Nós ficamos muito bons em detectar padrões, nós temos um viés naturalmente negativo para nos precaver, nós buscamos significados nas nossas percepções. Às vezes até demais: pareidolia é quando traduzimos estímulos visuais que não conseguimos resolver em imagens faciais - nós buscamos rostos no desconhecido.
É uma compulsão quase biológica que temos pelo significado.
Sempre que o sino toca, a comida chega: foi assim que Pavlov, o fisiologista russo que estudava condicionamento, adestrou seus cachorros. Em pouco tempo, o som do sino vai provocar a salivação, mesmo que a comida não chegue. Nós podemos ser facilmente condicionados por associações que parecem certeiras, confundir correlação com causalidade, e simplesmente começar a salivar ao som do sino - mesmo que não estejam servindo nenhum prato de comida.
A nossa percepção é narrativa. Vamos associar um acontecimento a outro, na esperança de decifrar causa e consequência. Conscientemente ou não, estamos buscando a linha que narra como A foi para B e causou C. Conscientemente ou não, vamos acreditar fervorosamente nela. No processo, podemos esquecer do essencial.
Eu nunca vou saber como é o mundo além das minhas próprias ferramentas de percepção. Só consigo percebê-lo se eu mesma apalpá-lo. Mais do que narrativos, vivemos na nossa própria ficção.
Como me vejo no espelho, o que me faz acordar de manhã, que tipo de pessoa eu acredito ser? Meus valores, meus atos - e os valores dos outros, e os atos deles. Nossa mente treinada vai digerir o caos inevitável da natureza, das pessoas e da realidade, e transformá-lo em uma narrativa. Viver é criar a ficção da nossa própria vida.
Pensar que nunca vou entender o mundo e as pessoas nele para além do que consigo sentir na ponta dos dedos ou elaborar na minha cabeça é desesperador. Isso me afligiu por muito tempo, e nesse desespero de superar a realidade inevitável eu sempre tentei expandir os limites. Se só consigo chegar até onde minhas ferramentas alcançam, eu vou ampliá-las o máximo possível. Eu vou aprender idiomas (nem sempre com sucesso kkk). Eu vou ouvir pessoas falando da própria experiência. Eu vou estudar, para que a bagunça que vive na minha mente possa encontrar novas combinações, e novos olhares.
A realidade não é exatamente como eu a percebo. Uma da sminhas poucas certezas é que não estou sozinha no mundo, me recuso a mergulhar nesse delírio solipsista. Passei a aceitar que vivo numa ficção justamente para poder expandi-la com os outros.
Uma das minhas formas favoritas de vivenciar o desconhecido e ampliar a minha realidade é a arte. Quando falei que a vida é irada passei brevemente pela premissa de que a arte salva, mais ou menos, às vezes. Toda vez que leio um livro ou quadrinho, vejo um filme, busco que alguma coisa no meu mundo mude - através da ficção do outro, eu desenvolvo a minha própria ainda mais.
(Às vezes é só uma bobagem ocasional, e tudo bem também hihi)
Me sinto uma mulher maior há cada ficção que encontro - sempre tomando cuidado para não buscar apenas a narrativa de pessoas muito parecidas comigo, senão não adianta.
Se somos ficção, quando nos alimentamos dela estamos mexendo em nós mesmos. É interessante diversificar, mergulhar, experimentar, sempre que possível.
Expandir pra enxergar. Sempre em busca de novas formas de apalpar as intimidades do mundo.
Ovelha recomenda
Uma newsletter: Tive o prazer de descobrir a Segredos em órbita, da
. O texto dessa semana, Uma pessoa dramática, está bom demais.Um filme: Acabei de ver Barbie (2023), da Greta Gerwig, e foi uma delícia. O que não faz a imaginação e um roteiro bem escrito.
Um outro filme: Assisti o desenho Your Name (2016), disponível no Max, e acabou comigo kkk gostoso demais.
Um livro: Ainda não terminei o romance perturbador Canção de Ninar, da Leïla Slimani, mas estou obcecada por ele.
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Meus textos na Delirium Nerd
Eu recém reli "Um, Nenhum e Cem Mil" então essa questão da auto-percepção e a forma como construímos nosso próprio mundo também está rondando bastante o pensamento por aqui. Obrigado pelo texto, foi um ótimo começo pra este domingo. 🙂