Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo (praticamente) quinzenal das vozes da minha cabeça.
Ei! Me ajuda a fazer o planejamento de 2025??
Responde essa pesquisa sobre quem me lê - é anônima e rapidinho, menos de dois minutos.
Foucault diz que é impossível existir à margem das relações de poder.
Assim, plau, no seco, sem contexto: Michel Foucault, filósofo francês que ficou bem pop a partir do século XX, disse que é impossível existir fora das relações de poder. No olhar dele, o poder não é uma relação unidirecional hierárquica de cima pra baixo, mas sim uma malha intrincada e complexa que envolve todos os atores de uma sociedade. Isso é o que ele chamou de microfísica do poder.
“Como assim??” alguém me pergunta, confuso com esse começo sem contexto. Explico: todos os indivíduos fazem parte e propagam relações de poder. Não existe como recusá-las, ou viver fora delas - a única possibilidade é tentar criar resistência e, eventualmente, modificá-las. Na sociedade ocidental, por exemplo, não existe ninguém que viva fora das relações raciais e racismo - mas existem movimentos de resistência, quilombos literais ou metafóricos. O quilombo não existe fora do racismo, ele existe como uma reação de resistência a ele.
Existem milhares de análises acadêmicas e mais bilhares de interpretações na forma de arte e conteúdo que tentam explicar as minúncias da nossa sociedade, mas o Foucault é um dos meus favoritos porque ele consegue traduzir a forma de certas coisa. Pensar em relações de poder que nos envolvem que nem o oceano envolve a vida marinha é um pouco desesperador, mas mais realista do que imaginar algo unidirecional com bonzinhos e mauzinhos. Essa premissa me ajuda a explicar uma questão que vive na minha cabeça faz meses: como é difícil ser subversivo. O que é ruptura e transgressão, e o que é só a mesma vida de sempre por um outro ângulo?

Pensemos na nossa sociedade, patriarcal, heterocompulsória, racista. Muita coisa que chega em mim marketizado como resistência, transgressão ou subversão me desce com um gosto esquisito. Será que de fato recosturaram essas relações que nos envolvem que nem uma malha, ou só deram uma escovadinha que dá uma cara de novo? Por exemplo, mais mulheres CEO é um avanço ou uma manutenção dessa estrutura desigual? O movimento “i’m just a girl” que cresceu online é emancipatório ou reforça as mesmas bobagens de sempre? O lema “pretos no topo” é antirracista ou superficial, resgatando só alguns indivíduos para fora de uma estrutura que segue moendo negros? Modelo plus size na passarela da Victoria’s Secret modifica a visão geral sobre magreza, ou só autoriza que mantenham modelos com corpos de fome desfilando? O filme A Substância da Coralie Fargeat colocar a bunda da Margareth Qualley com destaque no filme ajuda ou prejudica a mensagem???
Muitas perguntas, poucas respostas. Levanto todos esses pontos não para entrar individualmente em cada um deles ou apontar dedo, até porque quem sou eu para definir esse tipo de coisa, mas para que a gente pense junto no que significa subversão real. Subverter, segundo o dicionário, significa modificar algo estabelecido, realizando transformações profundas; revolucionar; revolver(-se) de baixo para cima; destruir(-se); arruinar(-se). Imagino que boa parte de quem me lê concorda que o mundo atual precisa de alguma subversão, mas eu ainda quero entender o como. O que reforça essas relações de poder já existentes, e o que de fato resiste e propõe novas formas de se conectar?
Gosto do que coloca o próprio Foucault, que é mais interessante você produzir novas relações do que apenas negar as que existem. Quando ele fala de sexualidade, por exemplo, ele coloca: será que a questão é sobre pessoas queer serem permitidas viver uma vida exatamente igual à do indivíduo heterossexual médio, com exceção de transarem com pessoas ‘do mesmo sexo’, ou será que, a partir dessa existência que foge da norma, produzir novos tipos de relações e lógicas sociais? Pelo que deveríamos lutar?

Mais da metade dos parágrafos se encerrando com interrogação, e eu sinto muitíssimo. Tenho estado mais acadêmica por causa dos estudos, e na hora de escrever danço na perigosa fronteira entre agregar citando gente maneira e só repetir teoria dos outros e jamais concluir nada. Pois bem, vou brincar com a minha própria sorte e colocar um Stuart Hall aqui no meio: em seu livro Cultura e Representação, ele explora representatividade e estereótipos como ferramentas que perpetuam certos discursos e relações. Focado na questão racial, ele coloca três opções principais para combater a imagem do ‘negro preguiçoso e subserviente’ da época: inversão do estereótipo, que ele mapeou na alta de filmes de gangsters nos EUA; inversão das expectativas, associando negritude com coisas positivas - a exemplo do slogan Black is beautiful, negro é lindo; e uma terceira e mais complexa opção.
Inversão de estereótipos e essa associação livre ainda está dentro dos mesmos moldes vigentes. A sugestão dele é imaginar além, e entender uma forma de criar imagens que não partam dos estereótipos, que nasçam mais livres e portanto mais interessantes. Pensei numa metáfora ilustrativa, em que te entregam papel e lápis, e você observa os desenhos que existem para criar um novo e mais inédito. Nesse cenário, talvez seja mais inovador usar o lápis para ajudar a fazer cortes no papel e dobrar um origami ou coisa que o valha. Subversivo seria reimaginar a função do papel e do lápis.
Em um mundo internético, penso muito sobre o que é realmente ruptura. Um vídeo viral que critica os efeitos negativos das redes sociais é realmente uma forma de subverter a ordem, dado que ele existe na mesma lógica que ele critica? A internet às vezes dá uma sensação de punk e underground, mas não podemos esquecer que conteúdo é o mainstream e a forma afeta a substância.
A verdadeira subversão considera não só novas imagens ou discursos, mas como repensar as relações desde a estrutura. Em uma realidade que prioriza tanto o eu, eu, eu individual, subversivo é comunidade. Em um mundo fóbico para qualquer inconveninete, subversivo é seguir um ritmo humano.
Em um mundo online, subversivo acontece fora da tela.
Ovelha recomenda
Eu sou obcecada pelo trabalho do Reza Farazmand no Poorly Drawn Lines faz uns cinco anos, e recomendo que você se obceque um pouco também
Dois textos que tocam no ponto do que é transgressor vs o que é reforçar o status quo:
Não prometo nada #44: os encantos do heteropessimismo, da
Marie Declercq
#8 eu odeio o fenômeno i’m just a girl, da
marina sá
Li Todos Nós Adorávamos Caubóis, da
, e gostei bastante da narrativa e construção de personagens. Uma roadtrip gaúcha de duas melhores amigas que se afastaram, em que vamos entendendo seu passado enquanto vivemos seu presente.Textos que me pegaram essa semana:
E só pra não esquecer…
Meu livro de contos, Museu das Pequenas Falhas de Caráter, está à venda na editora Mondru!
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Meus textos na Delirium Nerd
Labirintos Digitais, falando sobre internet
a frase final reverberou aqui porque foi mais ou menos a partir deste pensamento que decidi sair das redes. quanto mais vivo offline, mais sinto que tô vivendo de fato. ótima reflexão!
Todos os problemas apontados me parecem ser problemas do capitalismo.