Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo (praticamente) quinzenal das vozes da minha cabeça.
“Máquinas de imagem são máquinas de explorar o tempo, de maquinar o tempo.”
Gilles Deleuze1, filósofo francês
Eu tenho fotos da minha infância, reveladas em filme e em sua grande maioria enfiadas em envelopes dentro da minha gaveta. Também tenho um quadro cheio de fotos do lado do computador no meu escritório - algumas muitas polaroids tiradas nos últimos seis anos, algumas de maquininha em eventos que imprimem três imagens capturadas em sequência, algumas mais antigas da minha família. Eu valorizo fotos, só nunca pensei muito sobre elas.
Comecei a ler ensaios sobre fotografia recentemente por demanda acadêmica. Antes disso, tinha pouca ou nenhuma reflexão sobre o tema fora do contexto de redes sociais. Imaginava vagamente o impacto que gravar imagens através de luz e química causou na sociedade, assim como as histórias que ouvi sobre as primeiras exibições de cinema, mas nunca engagei muito no pensamento.
Foi depois de ler essas elaborações acadêmicas que entendi o porquê de nunca parar para pensar no assunto: eu não consigo imaginar um mundo sem fotos. A fotografia me parece uma parte inerente da realidade. Consigo compreender que a primeira câmera surgiu em 1839, mas não consigo conceber direito o mundo antes disso.
A fotografia surgiu pouco antes do cinema, no século XIX. Walter Benjamin, intelectual alemão, escreveu que ambos foram responsáveis por uma mudança profunda na “experiência espectatorial”. Eles eliminam a distância, possibilitando que o indivíduo moderno tenha os objetos de interesse, representados em foto e filme, o mais perto possível. Arte e imagem nunca mais seriam consumidas da mesma forma, agora bem mais acessíveis para as massas.
As duas modalidades, cinema e a foto, são tipicamente modernas. Elas não foram apenas ruptura, mas também um reflexo das mudanças culturais da época. Na modernidade pós-industrial, o tempo estava passando por um processo de sistematização, com jornadas contadas em horas e não períodos, e relógios de pulso se tornando parte da indumentária da época. A foto e o filme são reflexo das novas relações humanas com o tempo.
Dentro dessas novas relaçãoes, a foto começa a ser vista como a memória e passado tangíveis. O filósofo francês Roland Barthes resume a foto como o “isso foi”. A pessoa fotografada seria o spectrum, remetendo ao fantasma. É alguém necessariamente real, que esteve lá. A foto seria uma viagem no tempo para um dado momento, com aquela pessoa, que existiu - “isso foi”. Barthes escreveu sobre isso nos anos 80, após perder a mãe, vivendo sua memória através das fotos.
Existe algo em relação ao momento congelado, o instante imortalizado. Tínhamos outras formas de registro com a pintura, mas a relação com a imagem e o objeto retratado era outra. Benjamin dizia que o objeto fotografado persiste na foto, e não “se extingue” como em outras formas de arte - um retrato pintado, dado o devido tempo, se torna mais sobre quem pintou do que sobre a pessoa retratada. Na fotografia, por outro lado, a humanidade da pessoa fotografada persiste, mesmo muitos anos depois. O spectrum de Barthes - alguém esteve lá, necessariamente, diante da câmera.
Barthes escreveu nos anos 80, e Benjamin nos anos 30 - muita coisa aconteceu com o aparato técnico da fotografia e os que veículos em que ela circula. Capturas ilimitadas pelo celular, a intangibilidade da nuvem, a vitrine das redes sociais, possibilidades de edição, inteligência artificial. O digital começa a se distanciar dessas análises que coloca a foto como um passado concreto, buscando novas relações com o tempo que sejam mais fiéis com o que vivemos hoje.
Na minha visão, se fotos já foram vestígios espectrais2 do passado, com algo de melancólico, diria que hoje elas são rastros e evidências de existência presente. A fotografia na rede social imortaliza o imediato, uma tentativa de capturar momentos e fragmentos que compõem uma identidade, constroem uma vibe. Mesmo as fotos que resgatam o passado estão em serviço de uma curadoria de imagem do presente.
A cultura atual, afinal de contas, se pauta por imagens. O centro do nosso consumo e identidade se dá por meio de imagens, o Instagram sendo a materialização perfeita disso. Um portfólio de nós mesmos cuidadosamente construído para evidenciar o que quer que queiramos evidenciar: nossa profissão, relacionamento, interesses, autenticidade. Fotografias de tudo que constrói o que somos no presente.
Nossa cultura atual tem uma relação esquisita com o tempo, nos tornando inimigos do fim, deslizando em feeds sem atrito: a temporalidade da imagem acompanhou esses movimentos. A foto, hoje, captura somente uma versão estilizada do Agora, transformando o “isso foi” de Barthes em um “isso é”, em constante construção.
Cabe avisar que Deleuze focava mais em cinema, apesar da citação ter casado certinho
“Vestígios espectrais” é um termo da intelectual estado-unidense Susan Sontag, relacionado com a ideia de que a fotografia capitura uma forma de presença ausente
Ovelha recomenda
Para quem ficou com curiosidade sobre o tema, alguns textos e recursos:
Pequena história da fotografia, do Walter Benjamin (está no livro Obras Escolhidas, vol.1 - Magia e Técnica, Arte e Política - mas é fácil achar PDF online!)
Sobre Fotografia, da Susan Sontag
A câmara clara, do Roland Barthes
Fotografia Contemporânea - Desafios e Tendências, organizado pelo Antonio Fatorelli, Victa Carvalho e Leandro Pimentel.
Acabei de ler Diorama, da Carol Bensimon e olha… pedrada! Uma história baseada em um crime real que ocorreu em solo gaucho, contado do ponto de vista da filha do suposto criminoso.
Vi O Fardo (2023), filme árabe sobre uma mãe de três filhos que está buscando uma forma de fazer aborto - bem interessante
Comecei a ler Lições de Grego, o mais recente da Han Kang. Li mais ou menos 20%, e estou envolvida na história. Ela escreveu A vegetariana e Atos humanos, dois livros excelentes que recomendo demais.
Comecei a ver Sr. e Sra. Smith, série do Prime vagamente inspirada no filme do Brad Pitt e Angelina Jolie. Donald Glover é parte da produção da série e um dos atores principais, razão pela qual resolvi dar uma chance. Foram três episódios até agora - dois bons e um piorzinho. Parece um entretenimento ok!
E só pra não esquecer…
Meu livro de contos, Museu das Pequenas Falhas de Caráter, está à venda na editora Mondru!
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Meus textos na Delirium Nerd
Labirintos Digitais, falando sobre internet
Que texto bom! Diante das telas, tudo me parece uma fotografia digital, mesmo as que não são, e isso se tornou tão cansativo. Eu venho pensando muito sobre o volume de estímulos visuais que recebo e o quanto isso interferiu na minha sensibilidade. No entanto, ver essas fotografias me faz pensar como os registros podem ser tão mais íntimos (menos com o intuito de exposição), e não apenas ao alcance dos olhos, também das mãos. Será que faz alguma diferença?
Suas fotos me lembraram o "Arquivo das crianças desaparecidas", da Valeria Luiselli, que eu adoro.