Como pensar futuros sem parecer um bigodudo europeu do século XIX?
evitando a cafonice que é o niilismo
Seja bem-vinde a mais um texto da newsletter Ovelha Azul - um reflexo (praticamente) quinzenal das vozes da minha cabeça.
Quer me ouvir falando sobre internet?
Fui convidada pelo pessoal do Escrita Matinal a dar um aulão sobre internet e conteúdo, e debater a grande questão: tem espaço para arte na internet?
O Escrita Matinal é um grupo online de produção e troca de textos, liderado pela Liana Ferraz. No aulão, divido o palco com a
, parte do time do Escrita, artista e profissional de marketing digital, e juntas vamos passar por uma visão geral da evolução da internet ao longo dos anos, seu uso por criadores de conteúdo, e tentar entender mais a fundo os lugares possíveis para arte online.O encontro é dia 8 de abril, terça-feira, 19h30, via Zoom, pelo valor de R$60,00. Teremos bate papo ao final!
Voltemos à programação normal
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niilismo
filosofia - no nietzschianismo, negação, declínio ou recusa, em curso na história humana e esp. na modernidade ocidental, de crenças e convicções — com seus respectivos valores morais, estéticos ou políticos — que ofereçam um sentido consistente e positivo para a experiência imediata da vida.
redução ao nada; aniquilamento; não existência.
A gente não anda muito otimista. Nas vias ditas progressistas ou de esquerda então, nem se fala. Eu amo meme, eu amo falar que o mundo já acabou, eu amo fazer piadas que advém diretamente da mente do palhaço, porém comecei a notar que o que eu estava soltando como piadoca está fazendo parte de um coro maior que, apesar do tom de humor às vezes casual, carrega um fundo de verdade. É o coro do vem meteoro, da ‘nossa a humanidade destrói tudo’, do nature is healing sem as pessoas. É o coro, meus amigues, da desistência.
Sei que não é fácil. A sensação é de apocalipse crônico, com a avalanche de informação paralisante que se mistura com uma olimpíada de sofrimentos e uma moralização aguda, tornando a existência impraticável. É especialmente complicado para pessoas cronicamente online - as redes sociais eliminam o tempo e o espaço, e a sensação do mundo todo acontecendo aqui e agora pode ser agonizante. Os sintomas estão pelas redes, pelos chats, nos grupos de amigos. Estamos tristes, feridos, atordoados. Existe um niilismo inerente no diálogo de quem antes queria mudar o mundo, uma resignação com o estado das coisas como se a única forma de mudá-las fosse um meteoro reescrevendo a realidade do zero.
Tendo essa tendência em vista, vim aqui te fazer um apelo sério, que creio que vai nos fazer bem: vamos superar o discurso literal de apocalipse e fim do mundo? Vamos deixar para trás essa performance niilista melancólica, que é tão CAFONA?
Eu entendo que vivemos em clima de medo, com a emergência climática e o autoritarismo dando as caras perigosamente. Não estou, de forma alguma, negando a validade desses medos ou chamando alguém de alarmista. Eu estou questionando só que talvez a gente esteja abraçando esse lugar com muita facilidade, sem ousar sonhar com futuros. Afinal, é um ciclo vicioso: o medo imobiliza, individualiza e isola. Como é possível sentir algo além, e ter esperança? Nessa economia????1!1
Em O espírito da esperança, Byung-Chul Han desenvolve a ideia de que nossa vida tem definhado apenas para sobrevivência por causa do medo. Segundo o autor, esse sentimento fecha o horizonte do tempo e é um excelente regime de dominação. Han chama o medo de ferramenta do neoliberalismo, que mantém os indivíduos isolados como consumidores. Criamos medo de pensar. Ele escreve que a chave dessa prisão seria a esperança: nos capacita a fugir do tempo fechado, o tempo do consumidor que não tem nada além do momento imediato. Disse ele: o presente sem sonhos não produz nada de novo. Viver significa ter esperança.

E veja bem, isso é diferente de um otimismo, que se desconecta da realidade e atrela o tempo à positividade. Para Han, o otimista e o pessimista são faces da mesma moeda, que se agarram a uma vida sem futuro, porque tudo é inerentemente positivo (para o otimista) ou negativo (para o pessimista). A gente precisa ir além dessas noções fechadas, precisamos sonhar com o que não aconteceu ainda. Precisamos vivenciar o tempo e enxergar o horizonte. Precisamos acreditar que nosso modo de vida de consumo desenfreado pode ter um fim, para poder fabricar um recomeço.
Afinal, o maior sucesso do capitalismo é a colonização do imaginário - eu já comentei essa colocação do Mark Fischer algumas vezes. É, sim, mais fácil imaginar o fim do mundo antes do fim do capitalismo. Eu sei que a linha que a minha newsletter tomou no último ano foi muito voltada para essas questões assustadoras da contemporaneidade, principalmente da vida online. Os contextos que se colapsam, as imagens que criamos, a planificacao do eu, os perigos que nossa subjetividade enfrenta. Comecei a refletir que podem parecer migalhas de desgosto, mas prometo que não são. Estudar para compreender é uma forma de lidar com o mundo, e escrever sobre isso é minha forma de propor essas visões para os outros.
Eu acredito que, mais do que informados, mais do que por dentro dos últimos desenrolares climáticos e tweet de políticos malucos, a gente precisa ser capaz de refletir a nossa realidade. Ir na contramão do que propõe o complexo internético - consumo ininterrupto de conteúdos rápidos sem pausa de digestão e reflexão. A gente precisa fazer o esforço de dar um passo para trás da inércia informacional e realmente estudar, entender e, a partir daí, mudar - nem que seja só a gente mesmo, a forma que a gente encara o mundo.
Eu acredito que moram aí várias oportunidades de subversão.

Sou suspeita, porque esse é um processo bem forte e pessoal pra mim. Tento compreender não porque eu ache que tudo é compreensível, mas porque o exercício de trazer para perto pela observação atenta é tudo que tenho para não enlouquecer. Porque me tira de dentro da minha cabeca e me põe em contato com a realidade e com o Outro. Porque o enlouquecimento, diante do que achamos incompreensível, parece ser a resposta racional e correta, mas no fim é só mais um jeitinho do medo se apresentar. Porque no esforço de compreender a gente também acaba cultivando esperança.
Sim, eu sei, disse Nietzsche que a esperança foi o presente de Zeus para que a humanidade, apesar das torturas da existência, nunca jogasse sua vida fora - e assim seria torturada perpetuamente. Sim, existe essa sensação de que qualquer pessoal racional pensaria desse jeito. Porém, vale lembrar que estamos falando de um homem branco que nasceu e viveu na Europa do século XIX. Período mergulhado no pensamento colonial, logo após o iluminismo, com a fé católica cheia de crises, um pensamento extremamente racionalista e antropocêntrico. É uma visão de mundo tão específica, mas que fica teimando em se fingir de universal.
Gosto do que coloca a filósofa Isabelle Stengers em seu livro No Tempo das Catástrofes: existe uma certa arrogância em achar que não precisamos de artifícios (crenças e saberes). Ah, porque a vida não tem sentido, ah porque o ser humano é terrível pi pi pi pó pó pó - será que ele é mesmo? Eu posso não ter uma espiritualidade definida ou achar que a gente tem um propósito ideal, mas isso não quer dizer que eu não posso achar a vida bonita, que eu não vou admirar a natureza, não vou me interessar por pessoas ou buscar comunidade. Corremos o risco de ficar encerrados numa visão humanista e racionalista, reproduzindo um ponto de vista limitado como se fosse universal.
Antes de ficar reproduzindo a cafonice que é o niilismo atual, busque outras vozes. Bora expandir esse referencial?
“Não há nada mais importante do que a vida. Estamos passando por uma experiência coletiva de apreensão diante de crises e pandemias, mas a constituição de mentalidades sensíveis significa também resiliência, capacidade de esses seres continuarem criando um mundo menos suscetível ao terrorismo psicológico que tem atingido a vida contemporânea.”
Ailton Krenak - Futuro Ancestral (2022)
Eu sei, é exaustivo viver momentos históricos, ascensão da extrema direita e o fascismo, a mudança climática, o lento rearranjo da ordem mundial. Sentir que o mundo pesa demais e precisar se recolher é normal, mas eu suplico que a gente veja isso como parte de um ciclo. Me recolho, remonto, e volto. Senão entramos nessa performance de melancolia ininterrupta que se mistura com a realidade, como se fosse a única forma de existir, como se não fosse uma mímese do movimento progressivo e imparável do mundo capitalista. Humanos caem, sim, mas eles se levantam. E assim seguem, sucessivamente. Ciclos são humanos.

E, de novo, niilismo é tão cafona. Niilismo é tão… século XIX e XX, sociedade ocidental pós industrial tentando se redescobrir no meio das quebras de paradigmas, sabe? É tão escritos-de-homens-brancos-europeus. Se for para a gente ter uma resposta emocional ao que tá acontecendo, mais do que o medo ou pessimismo, eu acredito que devia ser raiva. Raiva com urgência pra se mover. Raiva de sistema político opressor, de oligarquia de plataformas de tech, de bilionário maluco, de fanatismo de extrema direita, de legislação que sucateia direito reprodutivo, raiva de um modo de vida que demanda alienação para produzir e consumir ininterruptamente.
Stengers coloca que, se denunciar as falhas do nosso modo de vida bastasse, a gente já teria mudado o mundo. Que o caminho é um pouco mais longo e tortuoso: precisamos responsabilizar quem tomas decisões, recusar a anonimidade que eles abraçam com seus cargos de poder, e reimaginar o futuro. Precisamos recusar narrativas de excepcionalismo humano (espécie humana como centro da história e única inteligência terrestre): recomendo que leiam Stengers, Donna Haraway, Ailton Krenak. É um processo ativo. Não vai ser simples, porque não existe isso de recriar um mundo do zero no vácuo. Também não existe isso de mudar o mundo sozinho. Mas, se não fizermos alguma coisisinha, nem que seja observar e pensar profundamente, o que nos resta? Examinar a realidade e verdadeiramente refletir sobre ela é a única possibilidade de criar um futuro coletivo. Se não, apenas a barbárie.
Esperança é um ato coletivo e, justamente por isso, é subversiva. Esperançar é radical. Estudemos, pensemos, e reajamos. Conversemos e troquemos entre nós. Criemos redes reais. Foucault colocou uma vez: pensar é um ato perigoso.
Não podemos deixar o medo tomar conta e parar de pensar. Só tá permitido dizer que o mundo acabou se você acredita que somos capazes de construir outras formas de vida no lugar.
“Acredito que tempos difíceis estão por vir, quando desejaremos ouvir a voz de escritores que consigam ver alternativas ao que vivemos hoje e possam enxergar além desta nossa sociedade tomada pelo medo e por sua tecnologia obsessiva, [possam enxergar] outras maneiras de existir, e que possam até imaginar possibilidades reais de esperança. (…) Vivemos no capitalismo. O seu poder parece ser inevitável. Assim era o poder divino dos reis. Os seres humanos podem resistir a qualquer poder humano e mudá-lo.”
Ursula K. Le Guin - Discurso do National Book Award (2014) - Tradução por Ana Cristina Rodrigues, auxílio de Petê Rissati, revisão de Cláudia Fusco e Kátia Regina Souza - discurso na íntegra aqui
Ovelha recomenda
Indicações de leitura para observar o presente e imaginar futuros:
No Tempos das Catástrofe, da Isabelle Stengers
Ficar com o problema: fazer parentes no ctchuluceno, da Donna Haraway
O Espírito da Esperança: Contra a sociedade do medo, do Byung-Chul Han
Futuro Ancestral, do Aílton Krenak
Realismo Capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalistmo?, do Mark Fisher
Sobre a tirania: Vinte lições do século XX para o presente, do Timothy Snyder
A
fez a gentileza de traduzir um texto excelente da jornalista britânica Carole Cadwalladr: Como sobreviver à broligarquia
As artes hoje vieram do Public Domain Image Archive, um mundo de imagens que podem ser usadas gratuitamente. Encontrei as páginas de um friendship book, ou seja, um livro da amizade, que no século XVII era como um scrapbook coletivo/rede social analógica, em que você escrevia e fazia colagens e pequenas artes para seus amigos.
Textos que me pegaram essa semana:
Como encontrar a aurora boreal, também da
E só pra não esquecer…
Meu livro de contos, Museu das Pequenas Falhas de Caráter, está à venda na editora Mondru!
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Meus textos na Delirium Nerd
Labirintos Digitais, falando sobre internet
Assino embaixo, e também adicionaria que uma das mais fortes armas de resistência é arte, tanto consumir quanto criar. amei que você colocou a fala da Ursula Le Guin no final, não tem um dia que passe que eu não penso sobre esse discurso dela hihi 💜
Bia, acho que você vai curtir muito o Cosmopoéticas do Refúgio. É um livro curtinho e muito poderoso, ele é introdutório mas não trata o leitor como burro (uma coisa que costuma me incomodar bastante na maioria dos textos introdutórios a pensamentos decoloniais). É realmente uma pérola e tem tudo a ver com as coisas que você anda pensando